quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

Futebol, samba e Noel

Hoje meio barrigudo.
Mas já fui moleque muito bom centromédio. Pelo menos Biluca assegurava que eu era. E nunca peguei cerca nos quatro anos de U.M.P.A. — queria dizer: União dos Moços de Presidente Altino. A voz de Biluca mandava, porque era técnico e dono das camisas. Se era técnico de verdade, não sei. Sei que as camisas eram suas, e sem elas não havia jogo. Mas a família se mudou, o ginásio chegou e a presunção de bom centromédio foi-se embora.
Na Mooca, agora, eu via os moleques do Caiovás F.C. Papai vivia me apertando na escola. Era o único jeito, porque não estudaria de outro. Eu via os moleques e não podia jogar.
À boca da noite os grilos e os sapos já cantavam nas poças do campo da U.M.P.A. Depois da janta, cada um vinha do seu lado e a gente se juntava na sede. Então, folgados, fumávamos à vontade e contávamos coisas. Havia certo ar de homem na gente enquanto fumávamos. Sérios nas calças curtas, o dedo batendo no cigarro, a cinza caindo no chão. Contávamos coisas, vantagens.
Pois é. Eu bem podia ter quebrado aquele cara. Eu é que não quis.
Não que Biluca tivesse ódio do cara, não tinha raiva de ninguém, longe de ter raiva. É que falava de um jogo que perdêramos.
Ali pelas oito horas a vontade já crescia. Os mais velhos iam ajeitando as coisas, Biluca no seu cavaquinho, eu repicava na frigideira. Havia um surdo que um sujeito da Força Pública tocava (ele também era bom no pandeiro). As vozes se chegavam, se uniam e a gente batucava com vontade.
Naquelas noites da U.M.P.A., na pequena sede que era só um quartinho, alugado com dificuldades, a mensalidade pingada de cada um… Naquelas noites me surgia uma tristeza leve, uma ternura, um não sei quê, como talvez dissesse Noel… Eu estava ali, em grupo, mas por dentro estava era sozinho, me isolava de tudo. Era um sentimento novo que me pegava, me embalava. Eu nunca disse a ninguém, que não me parecia coisa máscula, dura, de homem. Não os costumes que a turma queria. Mas eu moleque gostava, era como se uma pessoa muito boa estivesse comigo, me acarinhando. As letras dos grandes sambas falavam de dores que eu apenas imaginava, mas deixava-me embalar, sentia.

Aos pés da santa cruz
Você se ajoelhou,
E em nome de Jesus
Um grande amor você jurou…

E depois, só depois, Noel nas noites de várzea. Pareceu-me engraçado que uma música tivesse dono, fosse feita por uma pessoa. Necessário também que eu diga — a primeira atração pelo sambista me nasceu dum fato obscuro. Para mim, Noel nem era nome de gente, Noel era nome de coisa, apenas cabia como nome de Papai Noel… E para mim, Papai Noel era coisa e não pessoa. Papai Noel, Saci, São Jorge montado no cavalo eram coisas, pessoas não.
Aos domingos a gente trepava num caminhão e ia jogar noutras vilas. Havia batucada na ida e na volta. Ou melhor, às vezes, voltávamos de cabeça baixa, maldizendo juiz, campo que a gente não conhecia, tudo para justificar a derrota.
Por esse tempo, comecei a prestar atenção nas letras dos sambas, e vi, mesmo sem entender, que o tamanho de Noel era outro, diferente, maior, tocante, não sei. Havia uma tristeza, uma coisa que eu ouvia e não duvidava que fosse verdade, que houvesse acontecido. O gosto aumentou, eu fui entendendo as letras, apanhando as delicadezas do ritmo que me envolvia. Hoje, quando a melodia me chega na voz mulata do disco, volta a tristeza de menino e os pelos pretos do braço se arrepiam.
Sobraram restos de memória dos jogos suados na U.M.P.A.
Rememoro-me, por exemplo, a marcar o maior gol decente da vida. Talvez o único realmente. Desenvolvido com estilo, cabeçada firme, resultado bom dum centro inteligente do ponta. Dando tudo certo. Goleiro estatelado no centro da meta. Sem entender nada. Eu me envergonhei porque Aldônia estava comendo pipocas do lado de lá do campo. E viu tudo. (Aldônia era uma espécie desajeitada de namoro que eu andava engendrando.) Deu em nada — um dia, ela me pilhou fumando escondido, na maior folga, perfeitamente um macaco trepado num abacateiro.
Contou. Danada! Em casa me bateram porque ela contou. Raiva — escrevi-lhe num bilhete palavrões infamantes, muito piores do que aqueles que escrevíamos nos armários do vestiário da U.M.P.A. “Sua isso, sua aquilo.” Tolice enorme. Surra dobrada, em casa. Papai me esperando com o bilhete na mão. A diaba contava tudo porque sabia que eu apanhava mesmo. Aquilo já era me fazer de palhaço.
Não fala mais comigo.
Engraçado — Aldônia até hoje não presta.
João Antônio, in Afinação da arte de chutar tampinhas

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