Hoje
meio barrigudo.
Mas
já fui moleque muito bom centromédio. Pelo menos Biluca assegurava
que eu era. E nunca peguei cerca nos quatro anos de U.M.P.A. —
queria dizer: União dos Moços de Presidente Altino. A voz de Biluca
mandava, porque era técnico e dono das camisas. Se era técnico de
verdade, não sei. Sei que as camisas eram suas, e sem elas não
havia jogo. Mas a família se mudou, o ginásio chegou e a presunção
de bom centromédio foi-se embora.
Na
Mooca, agora, eu via os moleques do Caiovás F.C. Papai vivia me
apertando na escola. Era o único jeito, porque não estudaria de
outro. Eu via os moleques e não podia jogar.
À
boca da noite os grilos e os sapos já cantavam nas poças do campo
da U.M.P.A. Depois da janta, cada um vinha do seu lado e a gente se
juntava na sede. Então, folgados, fumávamos à vontade e contávamos
coisas. Havia certo ar de homem na gente enquanto fumávamos. Sérios
nas calças curtas, o dedo batendo no cigarro, a cinza caindo no
chão. Contávamos coisas, vantagens.
— Pois
é. Eu bem podia ter quebrado aquele cara. Eu é que não quis.
Não
que Biluca tivesse ódio do cara, não tinha raiva de ninguém, longe
de ter raiva. É que falava de um jogo que perdêramos.
Ali
pelas oito horas a vontade já crescia. Os mais velhos iam ajeitando
as coisas, Biluca no seu cavaquinho, eu repicava na frigideira. Havia
um surdo que um sujeito da Força Pública tocava (ele também era
bom no pandeiro). As vozes se chegavam, se uniam e a gente batucava
com vontade.
Naquelas
noites da U.M.P.A., na pequena sede que era só um quartinho, alugado
com dificuldades, a mensalidade pingada de cada um… Naquelas noites
me surgia uma tristeza leve, uma ternura, um não sei quê, como
talvez dissesse Noel… Eu estava ali, em grupo, mas por dentro
estava era sozinho, me isolava de tudo. Era um sentimento novo que me
pegava, me embalava. Eu nunca disse a ninguém, que não me parecia
coisa máscula, dura, de homem. Não os costumes que a turma queria.
Mas eu moleque gostava, era como se uma pessoa muito boa estivesse
comigo, me acarinhando. As letras dos grandes sambas falavam de dores
que eu apenas imaginava, mas deixava-me embalar, sentia.
Aos
pés da santa cruz
Você
se ajoelhou,
E
em nome de Jesus
Um
grande amor você jurou…
E
depois, só depois, Noel nas noites de várzea. Pareceu-me engraçado
que uma música tivesse dono, fosse feita por uma pessoa. Necessário
também que eu diga — a primeira atração pelo sambista me nasceu
dum fato obscuro. Para mim, Noel nem era nome de gente, Noel era nome
de coisa, apenas cabia como nome de Papai Noel… E para mim, Papai
Noel era coisa e não pessoa. Papai Noel, Saci, São Jorge montado no
cavalo eram coisas, pessoas não.
Aos
domingos a gente trepava num caminhão e ia jogar noutras vilas.
Havia batucada na ida e na volta. Ou melhor, às vezes, voltávamos
de cabeça baixa, maldizendo juiz, campo que a gente não conhecia,
tudo para justificar a derrota.
Por
esse tempo, comecei a prestar atenção nas letras dos sambas, e vi,
mesmo sem entender, que o tamanho de Noel era outro, diferente,
maior, tocante, não sei. Havia uma tristeza, uma coisa que eu ouvia
e não duvidava que fosse verdade, que houvesse acontecido. O gosto
aumentou, eu fui entendendo as letras, apanhando as delicadezas do
ritmo que me envolvia. Hoje, quando a melodia me chega na voz mulata
do disco, volta a tristeza de menino e os pelos pretos do braço se
arrepiam.
Sobraram
restos de memória dos jogos suados na U.M.P.A.
Rememoro-me,
por exemplo, a marcar o maior gol decente da vida. Talvez o único
realmente. Desenvolvido com estilo, cabeçada firme, resultado bom
dum centro inteligente do ponta. Dando tudo certo. Goleiro estatelado
no centro da meta. Sem entender nada. Eu me envergonhei porque
Aldônia estava comendo pipocas do lado de lá do campo. E viu tudo.
(Aldônia era uma espécie desajeitada de namoro que eu andava
engendrando.) Deu em nada — um dia, ela me pilhou fumando
escondido, na maior folga, perfeitamente um macaco trepado num
abacateiro.
Contou.
Danada! Em casa me bateram porque ela contou. Raiva — escrevi-lhe
num bilhete palavrões infamantes, muito piores do que aqueles que
escrevíamos nos armários do vestiário da U.M.P.A. “Sua isso, sua
aquilo.” Tolice enorme. Surra dobrada, em casa. Papai me esperando
com o bilhete na mão. A diaba contava tudo porque sabia que eu
apanhava mesmo. Aquilo já era me fazer de palhaço.
— Não
fala mais comigo.
Engraçado
— Aldônia até hoje não presta.
João
Antônio, in Afinação da arte de chutar tampinhas
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