Sentada
na varanda, Dona Lucinha acerta agulha e pano, em infinita costura.
Há tantos anos que redige tais bordados que ela já nem sabe o que
está criando. O gato é testemunha daquele inartefato, enroscado em
falso ponto de interrogação. Afinal, o tempo é quem nos vai
alinhavando. Demasiado tarde: a vida coloca o dedal no dedo onde o
amor já fez a ferida.
Recuado
na sombra da varanda, o marido, Francolino Vicente, se balança na
cadeira, espapançudo ante um idoso jornal. É uma publicação
remota, dos tempos em que ele, realmente, lia jornais. Ele prefere
assim, entre bafo e desabafo:
— Só
leio jornal desses tempos em que apenas havia boas notícias.
O
copo está vazio, mas ele, de quando em quando, o leva aos lábios e
faz estalar um gozo. Francolino é como a aranha que encontra
alimento sem procurar comida. Sua teia é ali, nos invisíveis fios
da varanda. O tempo, para ele, se indefine:
— Hoje
é terça-feira em ponto.
O
homem sabe os segredos do mundo: o rio, verdadeiro, não mexe. Flui,
deixado e desleixado. Quem faz mover suas águas são os rabos dos
peixes, inumeráveis leques que nunca pausam. Como nós. Deixemo-nos
quietos como pedras e o tempo não anda.
Francolino
pousa, com vasta cerimônia, o pregueado jornal:
—
Lucinha?
— Diga,
marido.
— Você
gosta de mim?
Ela
abana a cabeça, negativamente. Responde sempre assim, despalavrada,
subterfugidia. Voltando a desfranzir o jornal, ele relança a atenção
na leitura, enquanto diz:
— Há-de
gostar.
Desde
que juntaram suas vidas é sempre assim. Todos os dias a cena se
repete, incluindo o gato que, com a amealhada preguiça, já nem
espreguiça. Tem sido assim desde que Francolino a raptou de uma
companhia de dançarinas que passara pela cidadezinha. Aconteceu há
quarenta anos. Perante juízos ele, na hora, se defendeu:
— Ser
roubada é um destino para mulher fortunada. Ainda calha bem que fui
eu quem deu andamento a esse rapto.
Que
a dançarina correspondesse àquela paixão isso o imperturbava. O
sal é que faz o maduro da manga verde. Assim, o amor havia de
chegar. Que ela tivesse sido arrancada de uma paixão, a dança, isso
nem comichava a consciência de Francolino. Foram somando filhos,
perdendo tempos. Nunca ela lhe entregou ternura, nem adocicou
palavra. Sempre distante, desacontecida. Sentada nos degraus da
tarde, ela bordava como se remendasse a sua existência.
—
Lucinha?
— Diga.
— Você
me gosta?
— Já
sabe que não.
E
logo o homem garantia: ela haveria de gostar. No enquanto, o tempo ia
visitando aquela varanda, deitando por ali mais poente que manhãs.
—
Estamos velhecendo — dizia
Francolino. — Estamos para aqui nos carcassando. Sabe como é
que a gente nota que estamos a velhecer?
— Deixe
me bordar em sossego.
—
Sabemos que estamos velhos porque nos
começam a nascer ossos e mais ossinhos. Nunca reparou, Lucinha?
— Leia
o seu jornal, homem.
O
homem prossegue: é isso a velhice, como se o corpo se preparasse
para caixa, todo ele gradeado a ossos, inorgânico. Francolino não
pretende dizer nada. Simplesmente quer desviar Lucinha a favor de sua
atenção. Mas a mulher continua toda nos lavores. Tudo em redor são
insignificâncias. Principalmente, ele, o sentadiço marido. Aquele
desprezo seria vingança da sua condição de roubada? Soubesse se e
não haveria estória.
—
Lucinha? Você...
— Não.
Até
que, certa semana, ele deixou de proceder à sacramental pergunta. No
início, Dona Lucinha nem notou diferença. Bordava seu longo tecido,
a costura e as mãos dela já tornadas simbióticas, amparadas no
entretecer recíproco. Aos poucos, porém, aquele silêncio do homem
lhe foi roendo o coração. Já não dava nem ponto nem nó. Até que
ela se extroverteu:
—
Francolino?
—
Sim...
— Já
não fala comigo?
Ele
sacudiu a cabeça, embrenhado na leitura de nenhuma página. Seus
olhos se adesivaram no jornal, parecia que ele estudava modo de
escapar entre as letrinhas, dissolvido em pontos e vírgulas.
A
esposa, com os tempos, se foi acrescentando de impaciências. Até
que, certa tarde, ela renovou a pergunta. Sua voz se estica em corda
de angústia:
— Já
não me pergunta nada, Francolino?
Francolino
nem tuge nem ruge. Então, ela se levanta e lhe entrega o pano que se
desenrola em infinitas desvoltas. O tecido se enrosca no colo do
homem e, aos poucos, vai ocultando o jornal. Por desatenção de suas
mãos ou por demasia de peso as páginas se rasgam, abrindo se um
abismo como se ao próprio tempo faltasse o chão. Se vê, então,
que aquilo que ela vem bordando, desde há anos, é um repetido e
sucessivo vestido de dança, adornado de mil folhos e plissados.
Parecia dessas roupas que só servem para despir.
Francolino
olhou o suspiro dos panos sobre o chão. E lembrou como, em tempos, a
vira no palco estreando luzes, vestida só com a nudez dela. Memória
desembrulhada, bordado tombado, jornal rasgado: o velho suspende um
gemido, quase uma lágrima. Visse ele quanto uma vida inteira pode
tombar assim num desembrulho. A voz em riachinho:
— Que
lindo esse vestido, Lucinha!
Debruçando
se sobre a cadeira do marido, Lucinha beija lhe longamente a testa.
Tão longamente que ele adormece, se afundando no rio do tempo, mais
denso que a própria vida.
Mia
Couto, in Na berma de nenhuma estrada
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