Passar
quatro dias e quatro noites em casa, vendo o Carnaval passar; ou não
vendo nem isso, mas entregue a uma outra e cifrada folia, que nesta
Quarta-Feira de Cinzas abre suas pétalas de cansaço, como se também
tivéssemos pulado e berrado no clube. Não ligar televisão,
esquecer-se de rádio; deixar os locutores falando sozinhos, na ânsia
de encher de discurso uma festa à base de movimento e de canto.
Perceber apenas o grito trêmulo, trazido e levado pelo vento, de um
samba que marca a realidade lúdica sem nos convidar à integração.
Beneficiar-se com a ausência de jornais, que prova a inexistência
provisória do mundo como arquitetura de notícias. Ter como
companheiro o irmão gato Crispim, exemplo de abstenção sem
sacrifício, manual de silêncio e sabedoria, aventureiro que
experimentou a vertigem da luta livre nos telhados e homologa a
invenção da poltrona. Penetrar no vazio do tempo sem obrigações,
como num parque fechado, aproveitando a ausência de guardas, e
descobrindo nele tudo que as tabuletas omitem. Aceitar a solidão;
escolhê-la; desfrutá-la. Sorrir dos psiquiatras que falam em
alienação do mundo e recomendam a terapêutica de grupo. Estimar a
pausa como valor musical, o intervalo, o hiato. O instante em que a
agulha fere o disco sem despertar ainda qualquer som. Andar de um
quarto para outro sem ser à procura de objetos: achando-os.
Descobrir, sem mescalina, as cores que a cor esconde; os timbres
entrelaçados no ruído. Olhar para as paredes, ou melhor: olhar as
paredes, em torno dos quadros. Sentir a casa como um todo e como
partículas densas, tensas, expectantes, acostumadas a viver sem nós,
à nossa revelia, contra o nosso desdém. Habitar realmente a casa,
quatro dias: como ilha, fortaleza, continente: infinito no finito.
Reconsiderar os livros; arrumá-los primeiro com método, depois com
voluptuosidade, fazendo com que cada prateleira exija o maior tempo
possível; verificar que é preciso antes tirar a poeira de um,
remover a boba capa de celofane que envolve a encadernação de
outro. Reler dedicatórias; abrir ao acaso livros de poetas que
preferimos e que infelizmente não são os mais modernos nem os mais
célebres; copiar meia estrofe por onde corre um arrepio verbal;
separar volumes que não nos falam mais nada e que devem tentar seu
destino em outras casas. Sentir chegada a hora dos álbuns de pintura
com pouco ou nenhum texto, e dos volumes iconográficos que nos
contam Paris ou a vida de Mallarmé. Viajar em fotografias; sentir-se
imagem flutuando entre imagens; a terra domesticada em figura,
tornada familiar sem perda de sua essência enigmática. Reconhecer
que muitos livros comprados a duras penas, pedidos ao estrangeiro ou
longamente mineirados nos sebos, não têm mais do que essa
oportunidade de comunicação durante o ano; deixar que fiquem a sós
conosco e nos confiem seu segredo. Admitir a fome, sem exigência de
horário, e matá-la com o que houver à mão; renunciar à ideia de
almoço e jantar, em reverência ao sagrado direito que assiste a
todos, inclusive e principalmente às cozinheiras, de brincarem o seu
Carnaval; achar mais gosto nessa comida, porque não é a
regulamentar nem é seguida de nada: todas as obrigações estão
suspensas, e só valem as que soubermos traçar a nós mesmos.
Descortinar na preguiça um espaço incomensurável, onde cabe tudo;
não enchê-lo demais; devassá-lo à maneira de um explorador que
não quer ser muito rico e tanto sente prazer em descobrir como em
procurar. Assim vosso cronista passou o Carnaval: sem fugir, sem
brincar, divertido em seu canto umbroso.
Carlos
Drummond de Andrade, in A bolsa & a vida
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