O
velho bairro me acolheu. A pequena igreja estava na penumbra, apagada
e irreal. De repente, veio-me à memória o acontecimento daquela
noite, a misteriosa ogiva com sua enigmática inscrição de letras
luminosas a dançarem furtivas. Que dizia o letreiro? “Entrada só
para os raros” e “Só para loucos”. Olhei inquisitivamente para
os velhos muros, desejando secretamente que o prodígio se repetisse,
que a inscrição me convidasse como louco, que a porta me deixasse
entrar. Ali, provavelmente, estaria o que eu desejava, ali, talvez,
interpretassem minha música. Resignado, olhava o escuro muro de
pedra, cercado de trevas, imerso profundamente em seu sono. E não
havia nenhuma porta nem arco ogival, só o escuro e silencioso muro
sem aberturas. Passei adiante sorrindo, saudei amistosamente o muro.
“Durma bem. Não vou acordá-lo. Qualquer dia será derrubado ou o
cobrirão de anúncios de firmas cobiçosas de dinheiro: mas agora,
ainda está aí, belo e quieto como sempre, e eu o amo por isso.”
Saindo de um escuro beco, surgiu à minha frente, assustando-me, um
indivíduo, um solitário caminhante que tarde se recolhia ao lar; de
passo fatigado, com gorro na cabeça, uma blusa azul, levava ao ombro
um pau donde pendia um cartaz e, diante do ventre, preso por
correias, um pequeno caixote, como os vendedores ambulantes de feira.
Lento, caminhava à frente; ao passar por mim não se voltou para
olhar-me, pois se o tivesse feito, até que o teria cumprimentado e
possivelmente lhe daria um cigarro. À luz do poste seguinte, tentei
ler seu estandarte, o anúncio vermelho cravado na extremidade da
haste; mas esta oscilava tanto que não consegui decifrar nada.
Chamei o homem e lhe pedi que me mostrasse o placar. Deteve-se e
segurou a haste um pouco mais erguida, de modo que pude soletrar em
caracteres maiúsculos e inseguros:
NOITADA
ANARQUISTA!
TEATRO
MÁGICO! ENTRADA SÓ PARA RA...
—
Estava à sua procura — exclamei
alegre. — Que noitada é essa? Onde é? Quando vai ser?
O
homem continuou a caminhar.
— Não
é para qualquer um — disse indiferente, com voz sonolenta, e
continuou seu caminho.
—
Espere — gritei, correndo atrás dele.
— Que leva nessa caixa? Gostaria de comprar-lhe alguma coisa.
Sem
se deter, apanhou um folheto na caixa, mecanicamente, entregou-o a
mim. Apanhei e guardei-o. Enquanto desabotoava o casaco para tirar
dinheiro, o homem desapareceu por um portão, que se cerrou às suas
costas. No pátio, ouvi soarem ainda seus passos pesados: primeiro,
nas lajes do pavimento; depois, a subir uma escada de madeira; e não
ouvi mais nada. Foi quando, de repente, me senti também muito
cansado e tive a sensação de que era muito tarde e que seria
conveniente regressar a casa. Corri apressado, e logo me encontrei em
meu quarteirão, após atravessar as adormecidas ruelas do arrabalde,
onde moravam, em pequenas casas muito limpas, atrás de um pouco de
grama e hera, funcionários públicos e pequenos pensionistas.
Passando diante da hera, diante da grama, diante do pequeno abeto,
cheguei à porta de casa, procurei o buraco da fechadura, achei o
interruptor da luz, deslizei pela porta envidraçada, passei diante
dos armários envernizados e do vasos de planta e me enfurnei em meu
quarto, em minha pequena aparência de lar, onde me esperava a
poltrona e a estufa, o tinteiro e a caixa de tintas, Novalis e
Dostoievski, assim como aos outros homens, os homens verdadeiros, os
esperam quando voltam a casa a mãe ou a mulher, os filhos, os
criados, os cães e os gatos. Quando tirei o casaco úmido, voltou a
cair-me entre as mãos o pequeno folheto. Era um livrinho delgado,
impresso em papel muito ruim; um livreto de feira, como aqueles
fascículos intitulados O Homem que Nasceu em Janeiro ou Como
Tornar-se Vinte Anos Mais Jovem em Oito Dias Mas, quando me achava
acomodado na poltrona e pusera os óculos para ler, com grande
admiração e com a sensação repentina de que ali estava encerrado
o meu Destino, dei com o título que figurava na capa do opúsculo:
Tratado do Lobo da Estepe. Somente para os raros. E seguia o conteúdo
do livreto, que li de um só fôlego, em contínuo e crescente
interesse.
Hermann
Hesse, in O Lobo da Estepe
Este livro mudou minha vida na adolescência.
ResponderExcluir