Quando
me deitei, à meia-noite, os preços estavam à altura do pescoço.
“Bem, terei sete horas de trégua”, pensei comigo, e o sono
neutralizador afundou o quarto e os números numa escuridão
paralítica.
Acordando
à primeira tinta da aurora, notei com assombro que os preços haviam
subido oitenta centímetros, e para verificá-los tinha eu de subir à
cadeira de estimação deixada por minha avó; cadeira que me coubera
em legado, com a cláusula de jamais ofender-lhe o veludo carmesim.
“Vão-se
as alfaias de família, disse comigo, mas que importa?”, e
pisando-lhe o estofo imperial, dispus-me a anotar os preços no
canhenho já eriçado de algarismos velozes. Mas quando ia anotá-los,
deram um salto elástico e, claramente, à minha vista, sem que eu
pudesse esboçar o gesto de contê-los, foram bater no teto.
A
batida repercutiu em meu coração diagramado, e a poeira descendente
me recobriu as feições. Os preços, daquela altura prestigiosa e
para mim incomparável, pois que era o céu de minha habitação,
acintosamente me contemplavam — e eu a eles não os distinguia.
Aborrecido,
deixei o quarto de espantos e fui a meu centro de operações. Lá,
esperava-me a mesa farta de cédulas acumuladas, lisas e amarelas,
impressas um momento antes, e que meu amo me ofertava com um
discurso: “Sei do que se passa, estou a teu lado; chegam trinta
milhões?”. Providenciei o transporte daquela montanha pintada para
um caminhão; mas ao chegar a meu destino, o valor da carga não dava
para pagar metade do frete.
Discutíamos,
eu e os condutores do veículo, sobre a maneira de converter em
dívida hipotecária a longo prazo o importe do carreto, enquanto, na
rua, imensa mesa em forma de laranja estava provida de copos de água
gelada, e em torno dela os notáveis da terra discutiam o problema da
composição dos preços e das 527 maneiras de baixá-los, ou
detê-los. Fiz-lhes sinal para que se calassem, pois eu não escutava
bem o que meus credores me diziam a respeito da pena convencional,
mas eles continuavam a debater, e debatendo sorviam goles de água, e
nos intervalos admitiam que, sendo humanamente impossível frear os
preços, e quimera maior reduzi-los, era mister autorizá-los a
subir, para que não subissem fora da lei e dos bons costumes.
Ergui
a cabeça, e vi que sobre minha casa sem telhado os preços, sim, os
preços, lá em cima, balões verticalmente ativos, desafiavam
qualquer leitura.
Lembrei-me
de um primo aviador e corri no seu encalço, para que, do bojo de sua
máquina, perseguíssemos os balões. Ele me investiu no capacete
marciano e demais equipamentos adequados, mas para além dos planetas
e para fora das regiões onde a energia dormita e o mundo é começo
de organização, para lá do vivo e do possível, os preços subiam
e, subindo, subiam mais. O ruído da ascensão semelhava um riso
escarninho — se bem que úmido, talvez sabendo a lágrima.
Sendo
vã a porfia, roguei ao piloto que baixasse. Na Terra, os sábios e
os técnicos da mesa-redonda chegavam a entendimento. Uma vez que os
preços se haviam libertado de todas as leis físicas, era como se
não existissem: “Os preços acabaram, não há mais preços”.
Tudo voltou à calma, pastosa e coagulada calma, na rua e no mundo.
Carlos
Drummond de Andrade, in A bolsa & a vida
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