quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

Ascensão


Quando me deitei, à meia-noite, os preços estavam à altura do pescoço. “Bem, terei sete horas de trégua”, pensei comigo, e o sono neutralizador afundou o quarto e os números numa escuridão paralítica.
Acordando à primeira tinta da aurora, notei com assombro que os preços haviam subido oitenta centímetros, e para verificá-los tinha eu de subir à cadeira de estimação deixada por minha avó; cadeira que me coubera em legado, com a cláusula de jamais ofender-lhe o veludo carmesim.
Vão-se as alfaias de família, disse comigo, mas que importa?”, e pisando-lhe o estofo imperial, dispus-me a anotar os preços no canhenho já eriçado de algarismos velozes. Mas quando ia anotá-los, deram um salto elástico e, claramente, à minha vista, sem que eu pudesse esboçar o gesto de contê-los, foram bater no teto.
A batida repercutiu em meu coração diagramado, e a poeira descendente me recobriu as feições. Os preços, daquela altura prestigiosa e para mim incomparável, pois que era o céu de minha habitação, acintosamente me contemplavam — e eu a eles não os distinguia.
Aborrecido, deixei o quarto de espantos e fui a meu centro de operações. Lá, esperava-me a mesa farta de cédulas acumuladas, lisas e amarelas, impressas um momento antes, e que meu amo me ofertava com um discurso: “Sei do que se passa, estou a teu lado; chegam trinta milhões?”. Providenciei o transporte daquela montanha pintada para um caminhão; mas ao chegar a meu destino, o valor da carga não dava para pagar metade do frete.
Discutíamos, eu e os condutores do veículo, sobre a maneira de converter em dívida hipotecária a longo prazo o importe do carreto, enquanto, na rua, imensa mesa em forma de laranja estava provida de copos de água gelada, e em torno dela os notáveis da terra discutiam o problema da composição dos preços e das 527 maneiras de baixá-los, ou detê-los. Fiz-lhes sinal para que se calassem, pois eu não escutava bem o que meus credores me diziam a respeito da pena convencional, mas eles continuavam a debater, e debatendo sorviam goles de água, e nos intervalos admitiam que, sendo humanamente impossível frear os preços, e quimera maior reduzi-los, era mister autorizá-los a subir, para que não subissem fora da lei e dos bons costumes.
Ergui a cabeça, e vi que sobre minha casa sem telhado os preços, sim, os preços, lá em cima, balões verticalmente ativos, desafiavam qualquer leitura.
Lembrei-me de um primo aviador e corri no seu encalço, para que, do bojo de sua máquina, perseguíssemos os balões. Ele me investiu no capacete marciano e demais equipamentos adequados, mas para além dos planetas e para fora das regiões onde a energia dormita e o mundo é começo de organização, para lá do vivo e do possível, os preços subiam e, subindo, subiam mais. O ruído da ascensão semelhava um riso escarninho — se bem que úmido, talvez sabendo a lágrima.
Sendo vã a porfia, roguei ao piloto que baixasse. Na Terra, os sábios e os técnicos da mesa-redonda chegavam a entendimento. Uma vez que os preços se haviam libertado de todas as leis físicas, era como se não existissem: “Os preços acabaram, não há mais preços”. Tudo voltou à calma, pastosa e coagulada calma, na rua e no mundo.
Carlos Drummond de Andrade, in A bolsa & a vida

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