terça-feira, 3 de janeiro de 2017

O livro da memória (trecho)

Estou nas ruínas de Cartago, na Tunísia. As pedras são romanas, pedaços de muros construídos depois que a cidade foi destruída por Cipião Emiliano, em 346 a.C., quando o império cartaginês tornou-se província de Roma e foi rebatizado de África. Aqui, santo Agostinho, quando era jovem, ensinou retórica antes de ir para Milão. Perto dos quarenta anos de idade, atravessou o Mediterrâneo novamente, para estabelecer-se em Hipona, onde hoje é a Argélia; morreu ali em 430 d.C., quando os vândalos montavam o cerco à cidade.
Trouxe comigo minha edição escolar das Confissões, um volume fino Classiques Roma, de capa cor de laranja, que meu professor de latim preferia a todas as outras edições.
Nestas ruínas, com o livro nas mãos, experimento um certo sentimento de camaradagem para com o grande poeta renascentista Francesco Petrarca, que sempre levava consigo uma edição de bolso de Agostinho. Ao ler as Confissões, sentiu que a voz de Agostinho falava tão intimamente com ele que, perto do fim da vida, compôs três diálogos imaginários com o santo, publicados postumamente com o título de Secretum meum.
Uma observação a lápis na margem de minha edição comenta os comentários de Petrarca, como se continuasse aqueles diálogos imaginários.
É verdade que algo no tom de Agostinho sugere uma intimidade confortável, propícia a compartilhar segredos. Quando abro o livro, minhas anotações na margem trazem-me à lembrança a ampla sala de aula do Colégio Nacional de Buenos Aires, onde as paredes tinham a cor da areia cartaginesa, e recordo a voz de meu professor recitando as palavras de Agostinho, recordo nossos debates pomposos (tínhamos quatorze, quinze, dezesseis anos?) sobre responsabilidade política e realidade metafísica. O livro preserva não só a memória daquela adolescência distante, de meu professor (já morto), das leituras de Agostinho por Petrarca, que nosso professor lia com aprovação, mas também de Agostinho e suas salas de aula, da Cartago que foi construída sobre a Cartago destruída, para ser destruída novamente. A poeira dessas ruínas é muito mais velha que o livro, mas o livro também as contém, Agostinho observou e depois escreveu o que recordava. Entre minhas mãos, o livro relembra duas vezes.
Talvez tenha sido a sensualidade (que ele tanto tentou reprimir) que fez de Agostinho um observador tão agudo. Ele parece ter passado a parte final de sua vida num estado paradoxal de descoberta e distração, maravilhando-se com o que seus sentidos lhe ensinavam e, no entanto, pedindo a Deus que afastasse dele as tentações do prazer físico. O hábito de ler em silêncio de Ambrósio foi observado porque Agostinho cedeu à curiosidade de seus olhos, e as palavras no jardim foram ouvidas porque ele se entregou aos odores da relva e à canção de pássaros invisíveis.
Não foi apenas a possibilidade de ler em silêncio que surpreendeu Agostinho. Escrevendo sobre um antigo colega de escola, ele chamou a atenção para a extraordinária memória do homem, a qual lhe permitia compor e recompor textos que lera e decorara havia muito tempo. Era capaz, diz Agostinho, de citar o penúltimo verso de cada livro de Virgílio “rapidamente, em ordem e de memória.[...] Se pedíamos então que recitasse o verso anterior a cada um daqueles, fazia-o. E acreditávamos que seria capaz de recitar Vírgílio de trás para a frente.[...] Se quiséssemos até mesmo trechos em prosa de discursos de Cícero que havia armazenado na memória, também isso era capaz de fazer”. Lendo em silêncio ou em voz alta, esse homem era capaz de imprimir o texto (na expressão de Cícero que Agostinho gostava de citar) “nas tabuletas de cera da memória”, para relembrá-lo e recitá-lo quando quisesse, na ordem que escolhesse, como se estivesse folheando as páginas de um livro. Ao recordar o texto, ao trazer à mente um livro que um dia teve nas mãos, esse leitor pode tornar-se o livro, no qual ele e os outros podem ler.
Em 1658, aos dezoito anos de idade, estudando na abadia de Port Royal sob o olhar vigilante dos monges cistercienses, Jean Racine descobriu por acaso um antigo romance grego, Os amores de Teagenes e Carícleia, cujas noções de amor trágico ele talvez tenha relembrado anos depois, ao escrever Andrômaco e Berenice. Racine levou o livro para a floresta que cercava a abadia e começara a ler com avidez quando foi surpreendido pelo sacristão, que arrancou o livro das mãos do rapaz e jogou-o numa fogueira. Pouco depois, Racine conseguiu achar um outro exemplar, que também foi descoberto e lançado às chamas. Isso o estimulou a comprar um terceiro exemplar e a decorar o romance inteiro.
Então entregou-o ao feroz sacristão, dizendo: “Agora podes queimar este também, como fizeste com os outros”.
Alberto Manguel, in Uma história da leitura

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