sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

Mar me quer (Quarto capítulo)

Chaminé que construísse em minha casa não seria para sair o fumo, mas para entrar o céu.
(Dito do avô Celestiano)

O dia começa sempre de mentira. Porque o sol só finge nascer. Aquela manhã acordou com vontade de esquentar e eu me decidi passear pela praia. Foi quando encontrei Luarmina mergulhada numa poça de água. Estava vestida e as roupas colavam-se no corpo. Aproximei e lhe perguntei a razão daqueles banhos. Ela respondeu que queria aquecer as pernas.
A água está quentinha?
Não recebo quentura da água. Quem me aquece são caracóis.
E explicou: havia uns certos caracóis que lhe lambiam as pernas, pastando nessas gorduras dela. Os bichos desqualificavam viscosas salivas sobre a vizinha e eu só pensava: mal empregadas as minhas próprias babas, com o devido respeito. E salvo seja.
Dá licença eu entrar?
Entrar onde?
Nessa água onde a senhora está ser banhada.
Entrei, fui-me achegando perto da vizinha. Me entornei na água e fechei os olhos igual como ela. Minhas mãos fingiram ser caracóis, lesmas babadoiras lavrando nas coxas de Luarmina. Para meu espanto, a mulata não me repeliu. Meus dedos prosseguiram, cumprindo seu dever, pescando entre roupa e corpo. Espreitei pela esquina dos olhos: a gorda Luarmina estava flutuando, embevencida, parecia um navio repousando em desenho de criança.
De repente, porém, ela soltou um grito. Emendei minha malandrice, mãos atrás das costas.
Susto, Dona! O que foi?
Luarmina apontou qualquer coisa sobre as águas. Eram peixes mortos boiando.
Veja, Zeca, são peixes sem olhos!
Um arrepio me atravessou. Aquilo era um sinal. Alguém, da outra margem do mundo, me estava vigiando. Mania dos mortos é teimarem em ser humanos. E ali, entre mim e Luarmina, se vertia a mensagem dos divinos. A mulata estava mais aterrorizada que eu.
O que é isso, Zeca?
É melhor sairmos da água. Venha, eu lhe ajudo.
Luarmina tremia. Para espantar seu medo falei sem parar. Os peixes sabe o que são? Como apareceram? Então, sente e sossegue. Isso, assim. Lhe vou contar a versão de meu avô Celestiano. No antigamente não havia bicho dentro do mar. Só na terra e no ar. Muitos pássaros havia, vogando apenas sobre os continentes. Os deuses se contentavam de ver-lhes voar sobre as florestas, subir acima das montanhosas alturas. Uma vez, um pássaro se atreveu a pairar sobre as águas. E ele surpreendeu, no reflexo, a beleza do seu próprio voo. Regressou e contou aos outros:
Já sei por que nos proíbem voar sobre o oceano.
E foram, aos milhares, bandos ansiosos por verem a sua imagem. Nunca, sobre o mar, se haviam formado tais nuvens: feitas de plumas, ágeis de suster peso. Foi então que estalou a tempestade, castigo dos divinos deuses. Os relâmpagos rasgavam as aves, como facas luminosas. Milhares de asas tombaram nas ondas e foram ganhando embalo das correntes, como se continuassem voagens em líquidas vagas. Assim, da asa nasceu a onda, da pluma nasceu a espuma.
Da maneira como estou, Zeca, nem me apetece ouvir nenhumas histórias.
Luarmina não queria distração. O braço da angústia puxava-a para o fundo. Melhor seria se fosse ela a falar:
E você, Luarmina, lembra da sua família?
Mas ela não respondeu. Seu passado era como o futuro em nossas línguas: começava apenas quando acabava, como lagarto que fosse comido pela própria cauda. O resto se dissolvia em carimbos de tristeza.
Enquanto tive dedo dedilhei panos, vesti gente.
Mas esse serviço de confeitar vestes não lhe enchia a vida. Ela queria ser outra coisa, queria crescer de si mais gente, ter filhos, nascer-se em outras vidas. Mas sem essa dádiva, entrar em sua casa, tão sem outros, não lhe dava vontade. Essa a razão por que vivia mais em varanda que dentro das paredes.
É por causa disso que gosto de ouvir histórias de família. Vá, me conte mais sobre sua casa, sua família.
Não peça isso, Luarmina.
Sabe uma coisa, Zeca: esta noite, toda luarada, acho que vou tomar banho fora, no quintal.
Nua? Quer dizer, despida?
Quem sabe, Zeca?
E a senhora me deixa espreitar?
Se contar, eu deixo.
Mia Couto, in Mar me quer

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