terça-feira, 17 de janeiro de 2017

Esperas e surpresas

Num interlóquio com Marisa Pires, disse-me ela que só gostava de poemas com rimas porque “a gente já ficava esperando com água na boca” o que viria depois... e, tendo eu, para manter o papo, adotado a tese contrária, acabamos ficando cada um com a sua opinião e também com a do outro. O que está “absolutamente certo!” — como lá diziam os antigos locutores.
Porque na verdade esta vida só tem dois encantos: o previsto e o imprevisto.
Um exemplo da curtição do primeiro. Despertar e ficar um momento de olhos fechados — sabendo que existe a luz. E no entanto verás, ao abrir os olhos, que é como se fosse uma revelação... Quanto ao imprevisto, pela sua própria natureza, é-me impossível sugerir-te exemplos: deves tu mesmo procurá-los na memória.
Mas ouso afirmar que, mesmo para o poeta que está fazendo um poema rimado, a rima ainda é ou pode ser um imprevisto. Com exceção desses que rimam “Meu Deus!” com “os olhos teus”. Sim! os olhos teus — coisa esta que ninguém diz no pleno uso de suas faculdades, mas tão encontradiça nas modinhas, inclusive as do grande Catulo, o da paixão brasileira.
Ora, voltando às revelações da rima, me lembro de que, ao ler pela primeira vez a Balada dos enforcados de François Víllon, e ao notar que a rima seria do princípio ao fim em “oudre” — rima rara em francês — e que aparentemente só lhe faltava o verbo “coudre”, senti um mal-estar, mas o poeta saiu do aperto dizendo que os enforcados, expostos ao ar e às bicadas dos pássaros, estavam “tout bécquetés comme des dés à coudre” — isto é, picotados como dedais.
E eis como um poeta da sua alta laia nos dá uma verdadeira surpresa com uma rima para lá de esperada.
Mário Quintana, in A vaca e o hipogrifo

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