terça-feira, 24 de janeiro de 2017

Cidade dos Imortais

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Ao desenredar-me por fim desse pesadelo, vi-me atirado e manietado a um oblongo nicho de pedra, não maior que uma sepultura comum, superficialmente escavado no áspero declive de uma montanha. Os lados eram úmidos, antes polidos pelo tempo que por labor. Senti no peito um doloroso latejo, senti que a sede me abrasava. Ergui-me e gritei debilmente. Ao pé da montanha, estendia-se sem rumor um arroio impuro, entorpecido por escombros e areia; na oposta margem, resplandecia (sob o último sol ou sob o primeiro) a evidente Cidade dos Imortais. Vi muros, arcos, frontispícios e foros: o alicerce era uma meseta de pedra. Uma centena de nichos irregulares, análogos ao meu, sulcavam a montanha e o vale. Na areia havia poços de pouca profundidade; desses mesquinhos buracos (e dos nichos) emergiam homens de pele cinzenta, de barba desleixada, nus. Pensei reconhecê-los: pertenciam à estirpe bestial dos trogloditas, que infestam as margens do golfo Arábico e as grutas etíopes; não me surpreendi que não falassem e que devorassem serpentes.
A urgência da sede me fez temerário. Considerei que estava a uns trinta pés da areia: de olhos fechados, com as mãos atadas às costas, atirei-me montanha abaixo. Afundei o rosto ensanguentado na água escura. Bebi como abeberam os animais. Antes de perder-me outra vez no sonho e nos delírios, inexplicavelmente repeti algumas palavras gregas: “Os ricos teucros de Zeléia que bebem a água negra do Esepo...
Não sei quantos dias e noites rodopiaram sobre mim. Dolorido, incapaz de recuperar o abrigo das cavernas, despido na ignorada areia, deixei que a lua e o sol brincassem com meu aziago destino. Os trogloditas, infantis na barbárie, não me ajudaram a sobreviver ou a morrer. Em vão, roguei-lhes que me dessem a morte. Um dia, com o fio de um pedernal, parti minhas ligaduras. Em outro, levantei-me e pude mendigar ou roubar — eu, Marco Flamínio Rufo, tribuno militar de uma das legiões de Roma — minha primeira detestada ração de carne de serpente.
A ânsia de ver os Imortais, de tocar a sobre-humana Cidade, quase me impedia de dormir. Como se penetrassem em meu propósito, não dormiam também os trogloditas: a princípio, inferi que me vigiavam; depois, que se haviam contagiado por minha inquietude, como poderiam contagiar-se os cães. Para afastar-me da bárbara aldeia, escolhi a mais pública das horas, o cair da tarde, quando todos os homens emergem das gretas e dos poços e olham o poente, sem vê-lo. Orei em voz alta, menos para suplicar o favor divino que para intimidar a tribo com palavras articuladas. Atravessei o arroio que os bancos de areia entorpecem e dirigi-me à Cidade. Confusamente, seguiram-me dois ou três homens. Eram (como os demais dessa linhagem) de minguada estatura; não inspiravam temor, mas repulsa. Tive de contornar algumas ribanceiras irregulares que me pareceram pedreiras; ofuscado pela pedreiras; ofuscado pela grandeza da Cidade, eu a supusera próxima. Por volta da meia-noite, pisei, eriçada de formas idolátricas na areia amarela, a negra sombra de seus muros. Deteve-me uma espécie de horror sagrado. Tão abominados pelo homem são a novidade e o deserto que me alegrei que um dos trogloditas me tivesse acompanhado até o fim. Fechei os olhos e aguardei (sem dormir) que rebrilhasse o dia.
Disse que a Cidade estava construída sobre uma meseta de pedra. Essa meseta, comparável a um alcantilado, não era menos árdua que os muros. Em vão esgotei meus passos; o negro embasamento não registrava a menor irregularidade, os muros invariáveis não pareciam consentir uma única porta. A força do dia fez com que me refugiasse numa caverna; no fundo havia um poço, no poço uma escada que se abismava até a treva inferior. Desci; por um caos de sórdidas galerias cheguei a uma vasta câmara circular, a muito custo visível. Havia nove portas naquele porão; oito davam para um labirinto que falazmente desembocava na mesma câmara; a nona (através de outro labirinto) dava para uma segunda câmara circular, igual à primeira. Ignoro o número total de câmaras; minha desventura e minha ansiedade as multiplicaram. O silêncio era hostil e quase perfeito; outro rumor não havia nessas profundas redes de pedra além de um vento subterrâneo, cuja causa não descobri; sem ruído, perdiam-se entre as gretas fios de água enferrujada. Habituei-me com horror a esse duvidoso mundo; considerei inacreditável que pudesse existir outra coisa além de porões providos de nove portas e além de longos porões que se bifurcavam. Ignoro o tempo que tive de caminhar sob a terra; sei que certa vez confundi, na mesma nostalgia, a atroz aldeia dos bárbaros e minha cidade natal, entre as videiras.
No fundo de um corredor, um não previsto muro me barrou os passos, uma remota luz caiu sobre mim. Ergui os ofuscados olhos: no vertiginoso, no mais alto, vi um círculo de céu tão azul que chegou a parecer-me de púrpura. Alguns degraus de metal escalavam o muro. O cansaço me relaxava, mas subi, só me detendo às vezes para pesadamente soluçar de felicidade. Fui divisando capitéis e astrágalos, frontões triangulares e abóbadas, confusas pompas do granito e do mármore. Foi-me assim concedido ascender da cega região de negros labirintos entretecidos à resplandecente Cidade.
Emergi numa espécie de pequena praça, ou melhor, de pátio. Circundava-o um só edifício de forma irregular e altura variável; a esse edifício heterogêneo pertenciam as diversas cúpulas e colunas. Mais que qualquer outro traço desse monumento inacreditável, causou-me admiração o antiquíssimo de sua construção. Senti que era anterior aos homens, anterior à terra. Essa evidente antiguidade (embora, de algum modo, terrível para os olhos) pareceu-me adequada ao trabalho de operários imortais. Cautelosamente a princípio, com indiferença depois, com desespero por fim, errei por escadas e pavimentos do inextricável palácio. (Depois averiguei que eram inconstantes a extensão e a altura dos degraus, fato que me fez compreender a singular fadiga que me infundiram.) “Este palácio é obra dos deuses”, pensei primeiramente. Explorei os inabitados recintos e corrigi: “Os deuses que o edificaram morreram”. Notei suas peculiaridades e disse: “Os deuses que o edificaram estavam loucos”. Disse isso, bem sei, com incompreensível reprovação que era quase remorso, com mais horror intelectual que medo sensível. A impressão de enorme antiguidade juntaram-se outras: a do interminável, a do atroz, a do complexamente insensato. Eu havia cruzado um labirinto, mas a nítida Cidade dos Imortais me atemorizou e repugnou. Um labirinto é uma casa edificada para confundir os homens; sua arquitetura, pródiga em simetrias, está subordinada a esse fim. No palácio que imperfeitamente explorei, a arquitetura carecia de fim. Abundavam o corredor sem saída, a alta janela inalcançável, a aparatosa porta que dava para uma cela ou para um poço, as inacreditáveis escadas inversas, com os degraus e a balaustrada para baixo. Outras, aderidas aereamente ao costado de um muro monumental, morriam sem chegar a nenhuma parte, no fim de dois ou três giros, na treva superior das cúpulas. Ignoro se todos os exemplos que enumerei são literais; sei que durante muitos anos infestaram meus pesadelos; já não posso saber se esse ou aquele traço é transcrição da realidade ou das formas que desatinaram minhas noites. “Esta Cidade”, pensei, “é tão horrível que sua mera existência e perduração, embora no centro de um deserto secreto, contamina o passado e o futuro e, de algum modo, compromete os astros. Enquanto perdurar, ninguém no mundo poderá ser valoroso ou feliz”. Não quero descrevê-la; um caos de palavras heterogêneas, um corpo de tigre ou de touro, em que pululassem monstruosamente, conjugados e odiando-se, dentes, órgãos e cabeças, podem (talvez) ser imagens aproximadas.
Não recordo as etapas de meu regresso, entre os poeirentos e úmidos hipogeus. Sei apenas que não me abandonava o temor de que, ao sair do último labirinto, me rodeasse outra vez a nefanda Cidade dos Imortais. Nada mais posso lembrar. Esse esquecimento, agora insuperável, foi talvez voluntário; talvez as circunstâncias de minha evasão tenham sido tão ingratas que, em algum dia não menos esquecido também, jurei esquecê-las.
Jorge Luis Borges, in O Aleph

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