Quando
ouviu dizer que eu ia à cidade, Vovó Ndzima emitiu as maiores
suspeitas:
– E
vai ficar em casa de quem?
– Fico
no hotel, avó.
–
Hotel? Mas é casa de quem? Explicar,
como? Ainda assim, ensaiei: de ninguém, ora. A velha fermentou nova
desconfiança: uma casa de ninguém? – Ou melhor, avó: é de quem
paga – palavreei, para a tranquilizar.
Porém,
só agravei. – Um lugar de quem paga? E que espíritos guardam uma
casa como essa? A mim me tinha cabido um prêmio do Ministério. Eu
tinha sido o melhor professor rural. E o prêmio era visitar a grande
cidade. Quando, em casa, anunciei a boa nova, a minha mais-velha não
se impressionou com meu orgulho. E franziu a voz: – E, lá, quem
lhe faz o prato?
– Um
cozinheiro, avó.
– Como
se chama esse cozinheiro? Ri, sem palavra. Mas, para ela, não havia
riso, nem motivo. Cozinhar é o mais privado e arriscado ato. No
alimento se coloca ternura ou ódio. Na panela se verte tempero ou
veneno. Quem assegurava a pureza da peneira e do pilão? Como podia
eu deixar essa tarefa, tão íntima, ficar em mão anônima? Nem
pensar, nunca tal se viu, sujeitar-se a um cozinhador de que nem o
rosto se conhece.
–
Cozinhar não é serviço, meu neto –
disse ela. – Cozinhar é um modo de amar os outros.
Ainda
tentei desviar-me, ganhar uma distração. Mas as perguntas se
somavam, sem fim.
– Lã,
aquela gente tira água do poço?
– Ora,
avô...
– Quero
saber é se tiram todos do mesmo poço.
Poço,
fogueira, esteira: o assunto pedia muita explicação. E divaguei,
longo e lento.
Que
aquilo, lá, tudo era de outro fazer. Mas ela não arredou coração.
Não ter família, lá na cidade, era coisa que não lhe cabia. A
pessoa viaja é para ser esperado, do outro lado a mão de gente que
é nossa, com nome e história. Como um laço que pede as duas
pontas. Agora, eu dirigir-me para lugar incógnito onde se deslavavam
os nomes! Para a avó, um país estrangeiro começa onde já não
reconhecemos parente.
– Vai
deitar em cama que uma qualquer lençolou? Na aldeia era simples:
todos dormiam despidos, enrolados numa capulana ou numa manta
conforme os climas. Mas lá, na cidade, o dormente vai para o sono
todo vestido. E isso minha avó achava de mais. Não é nus que somos
vulneráveis. Vestidos é que somos visitados pelas valoyi e ficamos
à disposição dos seus intentos. Foi quando ela pediu. Eu que
levasse uma moça da aldeia para me arrumar os preceitos do viver.
– Avó,
nenhuma moça não existe.
Dia
seguinte, penetrei na penumbra da cozinha, preparado para breve e
sumária despedida, quando deparei com ela, bem sentada no meio do
terreiro. Parecia estar entronada, a cadeira bem no centro do
universo. Mostrou-me uns papéis.
– São
os bilhetes.
– Que
bilhetes?
– Eu
vou consigo, meu neto.
Foi
assim que me vi, acabrunhado, no velho autocarro. Engolíamos poeiras
enquanto os alto-falantes espalhavam um roufenho ximandjemandje. A
avó Ndzima, gordíssima, esparramada no assento, ia dormindo. No
colo enorme, a avó transportava a cangarra com galinhas vivas. Antes
de partir, ainda a tentara demover: ao menos fossem pouquitas as aves
de criação.
–
Poucas como?
Se
você mesmo disse que lá não semeiam capoeiras. Quando entramos no
hotel, a gerência não autorizou aquela invasão avícola. Todavia,
a avó falou tanto e tão alto que lhe abriram alas pelos corredores.
Depois de instalados, Ndzima desceu à cozinha. Não me quis como
companhia. Demorou tempo de mais. Não poderia estar apenas a
entregar os galináceos. Por fim, lá saiu. Vinha de sorriso:
–
Pronto, já confirmei sobre o cozinheiro.
–
Confirmou o quê, avó?
– Ele
é da nossa terra, não há problema. Só falta conhecer quem faz a
sua cama.
Aconteceu,
depois. Chegado do Ministério, dei pela ausência da avó. Não
estava no quarto, nem no hotel. Me urgenciei, aflito, pelas ruas no
encalço dela. E deparei com o que viria a repetir-se todas tardes, a
vovó Ndzima entre os mendigos, na esquina dos semáforos. Um aperto
me minguou o coração: pedinte, a nossa mais-velha?! As luzes do
semáforo me chicoteavam o rosto:
– Venha
para casa, avó!
–
Casa?!
– Para
o hotel. Venha.
Passou-se
o tempo. Por fim, chegou o dia do regresso à nossa aldeia. Fui ao
quarto da vovó para lhe oferecer ajuda para os carregos. Tombou-me o
peito ao assomar à porta: ela estava derramada no chão, onde sempre
dormira, as tralhas espalhadas sem nenhum propósito de serem
embaladas.
– Ainda
não fez as malas, avó?
– Vou
ficar, meu neto.
O
silêncio me atropelou, um riso parvo pincelando-me o rosto.
– Vai
ficar, como?
– Não
se preocupe. Eu já conheço os cantos disto aqui.
– Vai
ficar sozinha?
– Lá,
na aldeia, ainda estou mais sozinha.
A
sua certeza era tanta que o meu argumento murchou. O autocarro
demorou a sair.
Quando
passamos pela esquina dos semáforos, não tive coragem de olhar para
trás.
O
Verão passou e as chuvadas já não espreitavam os céus quando
recebi encomenda de Ndzima. Abri, sôfrego, o envelope. E entre os
meus dedos uns dinheiros, velhos e encarquilhados, tombaram no chão
da escola. Um bilhete, que ela ditara para que alguém escrevesse,
explicava: a avó me pagava uma passagem para que eu a visitasse na
cidade.
Senti
luzes me acendendo o rosto ao ler as últimas linhas da carta:
“...agora, neto, durmo aqui perto do semáforo. Faz-me bem aquelas
luzinhas, amarelas, vermelhas. Quando fecho os olhos até parece que
escuto a fogueira, crepitando em nosso velho quintal...”.
Mia
Couto, in O fio das missangas
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