quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

A arte das letras

Essa qualidade de leitura, que permite ao leitor possuir um texto não apenas lendo atentamente as palavras, mas tomando-as parte de si mesmo, nem sempre foi considerada uma bênção. Há 23 séculos, nas proximidades das muralhas de Atenas, à sombra de um plátano junto a margem de um rio, um jovem de quem sabemos pouco mais que o nome, Fedro, lia para Sócrates um discurso de um certo Lísias, a quem Fedro admirava apaixonadamente. O jovem ouvira o discurso (cumprindo o dever de amante) várias vezes e no final obtivera uma versão escrita que estudou muito, até sabê-lo de cor.
Então, ansioso por compartilhar sua descoberta (como os leitores adoram fazer), buscara um público em Sócrates. O filósofo, adivinhando que Fedro trazia o texto do discurso escondido sob o manto, pediu-lhe que lesse o original, em vez de recitá-lo. “Não vou deixar que exercite sua oratória comigo, quando o próprio Lísias está aqui presente”, disse Sócrates ao jovem entusiasmado.
O diálogo antigo tratava sobretudo da natureza do amor, mas a conversa foi mudando de rumo alegremente e, mais para o fim, o tema passou a ser a arte das letras. Um dia, contou Sócrates a Pedro, o deus Thot do Egito, inventor dos dados, do jogo de damas, dos números, da geometria, da astronomia e da escrita, visitou o rei do Egito e ofereceu-lhe essas invenções para que as passasse ao seu povo, O rei discutiu os méritos e as desvantagens de cada um dos presentes do deus, até que Thot chegou à arte da escrita: “Eis aqui um ramo do conhecimento que irá melhorar a memória do povo; minha descoberta proporciona uma receita para a memória e para a sabedoria”. Mas o rei não ficou impressionado: “Se os homens aprenderem isso, o olvido se implantará em suas almas; eles deixarão de exercitar a memória, pois confiarão no que está escrito, e chamarão as coisas à lembrança não de dentro de si mesmos, mas por meio de marcas externas. O que descobristes não é uma receita para a memória, mas um lembrete. E não é sabedoria verdadeira o que ofereceis a vossos discípulos, mas apenas sua aparência, pois, ao lhes contar muitas coisas sem lhes ensinar nada, fareis com que pareçam saber muito, embora, em boa parte, não saibam nada. E enquanto homens cheios não de sabedoria, mas do conceito de sabedoria, eles serão um fardo para seus companheiros”. Um leitor, Sócrates advertia a Fedro, “precisa ser singularmente simplório para acreditar que as palavras escritas podem fazer mais do que recordar a alguém o que ele já sabe”.
Fedro, convencido pelo raciocínio do ancião, concordou. E Sócrates prosseguiu: “Sabes, Fedro, essa é a coisa esquisita em relação à escrita, aquilo que a torna realmente análoga à pintura. O trabalho do pintor ergue-se diante de nós como se as pinturas estivessem vivas, mas, se alguém as questiona, elas mantêm um silêncio majestoso.
Acontece a mesma coisa com as palavras escritas: elas parecem falar contigo como se fossem inteligentes, mas, se lhes perguntas qualquer coisa sobre o que estão dizendo, por desejo de saber mais, elas ficam repetindo a mesma coisa sem parar”. Para Sócrates, o texto lido não passava de palavras, nas quais signo e significado sobrepunham-se com precisão desconcertante.
Interpretação, exegese, glosa, comentário, associação, refutação, sentido alegórico e simbólico, tudo advinha não do próprio texto, mas do leitor. O texto, como um retrato pintado, dizia somente “a lua de Atenas”; era o leitor quem lhe atribuía uma face de marfim cheia, um céu escuro profundo, uma paisagem de ruínas antigas ao longo das quais Sócrates outrora caminhava.
Por volta do ano 1250, no prefácio ao Bestiaire d'amour, o chanceler da catedral de Amiens, Richard de Fournival, discordou da posição de Sócrates e propôs que, como toda a humanidade deseja conhecer e tem pouco tempo de vida, ela deve se basear no conhecimento reunido por outros para aumentar a riqueza de seus próprios conhecimentos. Para tanto; Deus deu à alma humana o dom da memória, ao qual temos acesso por meio dos sentidos da visão e da audição. De Fourníval aprofundou a noção de Sócrates. O caminho para a visão, disse ele, consistia de peintures, imagens; o caminho para a audição, de paroles, palavras. O mérito delas não estava apenas em expor uma imagem ou texto sem nenhum progresso ou variação, mas em recriar no espaço e no tempo do leitor aquilo que fora concebido e expresso em imagens e palavras em outra época e sob céus diferentes. Argumentava De Fournival: “Quando alguém vê uma história pintada, seja de Tróia ou outra coisa, veem-se aqueles nobres feitos que foram realizados no passado exatamente como se ainda estivessem presentes. E o mesmo acontece ao se ouvir um texto, pois, quando ouvimos uma história lida em voz alta, escutando os eventos, vemo-los no presente. E, quando lês, essa escrita com peinture e parole irá tornar-me presente em tua memória, mesmo quando não estou fisicamente diante de ti”. Ler, segundo De Fournival, enriquecia o presente e atualizava o passado; a memória prolongava essas qualidades no futuro. Para ele, o livro, não o leitor, preservava e transmitia a memória.
O texto escrito, no tempo de Sócrates, não era um instrumento comum. Embora existissem livros em número considerável na Atenas do século v a.C. e um comércio incipiente de livros, a prática da leitura privada só se estabeleceu plenamente um século depois, no tempo de Aristóteles - um dos primeiros leitores a reunir uma coleção importante de manuscritos para uso próprio. Era por meio da conversa que as pessoas aprendiam e passavam adiante conhecimentos, e Sócrates pertence a uma linhagem de mestres orais que inclui Moisés, Buda e Jesus Cristo, o qual uma única vez, dizem-nos, escreveu algumas palavras na areia apagando-as em seguida. Para Sócrates, os livros eram auxílios à memória e ao conhecimento, mas os verdadeiros eruditos não deveriam precisar deles. Poucos anos depois, seus discípulos Platão e Xenofonte lembraram em um livro essa opinião depreciativa sobre livros, e a memória deles de sua memória foi assim preservada para nós, seus futuros leitores.
Alberto Manguel, in Uma história da leitura

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