quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

Realismo e nova realidade (trecho)

O realismo, no sentido estrito, foi um método para conquistar a realidade para o romance. Toda a realidade, pois era importante nada excluir dela — nem em favor de convenções estéticas, nem de convenções morais burguesas. Essa era a realidade tal como a viam alguns espíritos abertos e sem preconceitos do século XIX. Mas já então não viam tudo, o que, aliás, lhes foi devidamente censurado por aqueles seus contemporâneos que caprichosamente persistiam em exercícios outros, e aparentemente marginais. Mas, mesmo que possamos hoje admitir com convicção que os poucos representantes verdadeiramente significativos dentre os realistas alcançaram realmente seu objetivo; que conseguiram abarcar toda a sua realidade para o romance; que sua época foi mostrada, sem sobras, em suas obras — o que significaria isso para nós? Poderiam aqueles dentre nós que buscam a mesma meta — mas como homens do nosso tempo — e se veem como realistas modernos servir-se desses mesmos métodos?
Pressentimos já qual será a resposta a essa questão, mas, antes de enunciá-la, cabe refletir sobre o que foi feito da realidade de então. Ela se modificou em tão grande escala que mesmo uma noção preliminar desta nos deixa já completamente perplexos. Uma tentativa de dominar essa perplexidade leva-nos, penso eu, a distinguir três aspectos essenciais dessa mudança. Há uma realidade crescente e uma realidade mais exata; em terceiro lugar, há a realidade do devir.
É fácil perceber o que se quer dizer com o primeiro desses aspectos, ou seja, com a realidade crescente: há aqui muito mais coisas, não apenas quantitativamente (mais seres humanos e objetos); mas há infinitamente mais coisas também sob o aspecto qualitativo. O Velho, o Novo e o Outro afluem de todos os lados. O Velho: um número cada vez maior de culturas passadas é desenterrado; história e pré-história recuam cada vez mais no tempo. Uma arte antiga, de uma perfeição enigmática, tirou-nos para sempre a altivez com relação à nossa própria arte. A terra volta a ser povoada com seus mortos mais antigos. Eles ressuscitaram por meio de suas ossadas, seus utensílios, suas pinturas rupestres, e vivem agora em nosso imaginário como os cartagineses e egípcios viveram no imaginário dos homens do século XIX. O Novo: muitos de nós nasceram antes que o homem pudesse voar, e agora com certeza já fizeram sua viagem a Viena de avião. Alguns dos mais jovens entre nós serão ainda mandados à lua como turistas, e se envergonharão talvez, após o seu regresso, de publicar uma descrição sobre algo tão banal — assim como agora me envergonho de enumerar outras “novidades”. Na minha infância, tais novidades surgiam ainda como milagres únicos: minha primeira lâmpada elétrica, minha primeira conversa telefônica. Hoje, as novidades nos rodeiam aos milhares, como moscas.
Além do Velho e do Novo, mencionei ainda o Outro, que aflui de todos os lugares: as cidades estrangeiras mas de fácil acesso, os países e continentes, a segunda língua, que cada um aprende paralelamente à língua materna (e muitos aprendem uma terceira e mesmo uma quarta línguas). Há também a investigação rigorosa de culturas estranhas, as exposições de sua arte, as traduções de obras de sua literatura; a investigação de povos primitivos ainda existentes: seu modo de vida material, a organização de sua sociedade, as formas que assumem sua crença e seus ritos, seus mitos. Aquilo que existe de completamente Outro, como as ricas e instigantes descobertas dos etnólogos, é incomensurável e não pode de forma alguma — como em geral se assumia antigamente, e como alguns ainda hoje gostariam de assumir — ser reduzida a uns poucos achados. Para mim, pessoalmente, esse crescimento da realidade é o mais significativo, porque sua apropriação demanda mais esforço que a apropriação do banalmente Novo, evidente a todos; mas, talvez, também porque ele reduz saudavelmente nossa altivez, que se deixa insuflar indiscriminadamente com o Novo. Com efeito, reconhece-se, entre outras coisas, que tudo já fora preconcebido nos mitos: o que hoje, com desembaraço, tornamos realidade são ideias e desejos antiquíssimos. No entanto, no que toca nossa capacidade de inventar novos desejos e mitos, estamos deploravelmente mal servidos. Vasculhamos os antigos, como que a remoer ruidosamente preces, sem ao menos sabermos o que essas preces mecânicas significam. Essa é uma experiência que deveria fazer-nos refletir, nós, poetas, que como tais temos a incumbência, sobretudo, de inventar o Novo. Finalmente, não quero deixar de mencionar ainda que o Outro, que só agora experimentamos seriamente, não se refere apenas aos seres humanos. A vida, tal como foi sempre a dos animais, ganha para nós um outro sentido. O conhecimento crescente de seus ritos e jogos demonstra, por exemplo, que eles — a quem, três séculos atrás, declaramos oficialmente máquinas — possuem algo como uma civilidade que pode ser comparada à nossa.
A ampliação de nossa época, sua realidade crescente, a uma aceleração para a qual não se pode antever meta alguma, é também a causa de sua confusão.
Elias Canetti, in A consciência das palavras

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