Viver
no mundo como se não fosse o mundo, respeitar a lei e no entanto
colocar-se acima dela, possuir uma coisa “como se não a
possuísse”, renunciar como se não tratasse de uma renúncia,
todas essas proposições favoritas e formuladas com frequência,
todas essas exigências de uma alta ciência da vida somente pode
realizá-las o humor. E no caso do Lobo da Estepe, a quem não faltam
faculdades e disposições para tanto, se lograsse, no labirinto de
seu inferno, absorver e transpirar essa bebida mágica, então
estaria salvo. Ainda lhe falta muito para isso, mas a possibilidade,
a esperança existem. Quem o ama, quem se interessa por ele, pode
desejar-lhe esta salvação. Ela iria, é verdade, mantê-lo preso ao
mundo burguês, mas seu padecimento seria suportável e produtivo.
Suas relações com o mundo burguês quer no amor ou no ódio
perderiam seu sentimentalismo e sua sujeição a ele cessaria de
atormentá-lo continuamente como um opróbrio. Para alcançar isto,
ou para, afinal, ser capaz de tentar o salto no desconhecido, teria
um lobo da estepe de defrontar-se algumas vezes consigo mesmo, olhar
profundamente o caos de sua própria alma e chegar à plena
consciência de si mesmo. Sua existência enigmática revelar-se-ia
então para ele em toda sua invariabilidade e ser-lhe-ia impossível
para sempre no futuro escapar do inferno de seus impulsos e
refugiar-se em consolos filosóficos e sentimentais. Seria necessário
que o homem e o lobo se conhecessem mutuamente sem falsas máscaras
sentimentais, que se fitassem nos olhos em toda a sua nudez. Então
explodiriam ou se separariam para sempre, de modo que não voltariam
a existir lobos da estepe ou chegariam a bons termos à luz nascente
do humor. É possível que Harry tenha um dia esta última
possibilidade. E possível que um dia aprenda a conhecer-se, seja
porque receberá nas mãos um dos nossos espelhinhos, seja porque
alcance o Imortal ou talvez encontre num dos nossos teatros mágicos
aquilo de que necessita para libertar sua alma desgarrada. Mil
possibilidades o esperam, seu destino as atrai irremediavelmente,
pois todos esses solitários da burguesia vivem na atmosfera dessas
mágicas possibilidades. Basta apenas um nada para que se produza a
centelha. E tudo isso é amplamente conhecido pelo Lobo da Estepe,
ainda que seus olhos nunca venham a dar com este fragmento de sua
biografia íntima. Ele suspeita e teme a possibilidade de um encontro
consigo mesmo, e está cônscio da existência daquele espelho no
qual tem uma necessidade tão amarga de olhar-se e no qual teme
mortalmente ver-se refletido. Para terminar nosso estudo resta
esclarecer ainda uma última ficção, um engano fundamental. Todas
as interpretações, toda psicologia, todas as tentativas de tornar
as coisas compreensíveis se fazem por meio de teorias, mitologias,
de mentiras; e um autor honesto não deveria furtar-se, no fecho de
uma exposição, a dissipar essas mentiras dentro do possível. Se
digo “acimas” ou “abaixo”, isso já é uma afirmação, que
exige um esclarecimento, pois só existem acima e abaixo no
pensamento, na abstração. O mundo mesmo não conhece nenhum acima
nem abaixo. Da mesma maneira, para ser sucinto, o lobo da estepe
também é uma ficção. Se o próprio Harry se sente como homem-lobo
e se crê formado por dois seres inimigos e opostos, isso é
puramente uma mitologia simplificadora. Harry não é nenhum
homem-lobo, e se aceitamos a princípio sua mentira, inventada e
acreditada por ele mesmo, e tentamos considerá-lo e explicá-lo
dentro da realidade como um ser duplo, como um lobo da estepe, foi
porque nos aproveitamos dela para sermos compreendidos mais
facilmente, mentira essa cuja retificação deve ser tentada agora.
Hermann
Hesse, in O Lobo da Estepe
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