A
seca durava há anos. Sem pingo, sem lágrima, sem gota.
Estranhava-se a tanta agrura daquela estiagem. Só podiam ser as
irrazoáveis razões. Tudo isso desacontecia em Nkulumadzi.
Pediram
parecer a Sinhorito. Era um tresandarilho, incapaz de solver nenhum
problema. Que a simples existência era, para ele, uma insuperável
dificuldade. Só podia ser por brincadeira que lhe pediam explicação
para a não comparência da chuva. Mas foi a ele que se dirigiram
para saber da razão daquele destempero do tempo. Sinhorito nunca
tinha sido consultado nem para secundar opinião de outro. Quanto
mais para dar parecer. Ficou insdrúxulo, a debicar luzes dentro da
cabeça. Nem emitiu boca, nem autorizou mosca.
– Calem
para ouvirmos bem o que ele vai falar! A risada esperava, no arco
tenso da multidão. Necessitava-se de um escape para o destino. Um
bode respiratório. Sinhorito era conhecido por não ter sabedoria de
nada.
Única
especialidade que dele se dizia: seus olhos seriam portáteis, de
tirar e aplicar.
O
próprio proclamava: que ele, sempre que lhe dava a gana, arrancava
os globos oculares e os escondia nas mãos. Sempre que se avizinhava
momento penoso ou coisa feia, Sinhorito retirava os olhos. Uma coruja
negra entrava na treva da noite, janelas por onde saía o mundo e
vazava o corpo. Nunca ninguém assistiu. Dizia-se, talvezmente. Mas,
enfim.
Ninguém
é só atrasado: outras habilidades se esconderão, em outra dimensão
do ser.
Desconfie-se.
– Assim
sem as vistas, quem sabe, evito as feiuras dessa vida.
Todavia,
ninguém acreditava em tais prodígios. Apenas Eulália, a mulher dos
Correios, se declarava crente. E ela lhe pedia, enquanto no assento
da praça: – Vá, tire agora.
E
ele, de pálpebras fechadas, exibia o cerrado dos punhos. Que estavam
ali, seus dois olhos, vivos como peixes fora de água. A mulher
sorria e mandava que fossem repostos.
Que
ela merecia era ser vista, ainda que gasta e engordada. E o moço
grunhia que era o modo de sua risada. E recarregava os olhos no lugar
do rosto.
Pois
era a este Sinhorito que consultavam agora sobre o anti-dilúvio. E
rodeavam-no, preparados para troçar. Não teriam outra glória, nem
vitória. A chacota do palerma lhes servia. O moço enchia o rosto,
olhos rondando no vácuo, à procura de um esboço para uma ideia.
Depois, ousou falar:
– Se
calhar. – Se calhar? – Ou quem sabe, o céu está de pernas para
o ar? Os primeiros risos. O disparate já começava a desenhar-se,
segundo as expectativas.
A
aldeia, quanto mais pequena, mais carece de um louco.
Como
se por via desse louco se salvassem, os restantes, da loucura. Mas
eis que, no momento, a palma da mão ordenava contenção:
–
Esperem. Esperem que o gajo ainda vai
dizer mais. Acaba lá, Doutor Sinhorito.
– É
que, quem sabe.
– Quem
sabe o quê?
– Quem
sabe a chuva está caindo para o lado de lã do céu.
Deflagraram
as gargalhadas. E repetiram, uns e outros, o absurdo do desatinado.
No fim, dispersaram. Ficou só Eulália, a dos Correios, toda sentada
e imóvel junto do apalermado. Então, ela lhe segurou a mão e lhe
pediu que não ficasse triste. E assim, como confissão primeira,
disse: – Eu acredito em si. Já me choveu uma água dessas, de
outro céu.
E
beijou na testa o moço. Depois, ela se enroscou junto aos pés dele.
Sinhorito, delicado, fez questão. Queria corrigir a sua postura,
tirá-la do chão. Mas Eulália desfez seus intentos.
–
Deixe-me assim, na sua sombra. Nunca tive
quem me protegesse.
Sinhorito
quedou-se imóvel. Tão compenetrado em fazer sombra que adormeceu,
singelo e desprovido. E ela se retirou, subtil como brisa.
Muitas
sombras passaram, muito sonho desandou. Só a seca não passava. E já
nem havia atmosfera, apenas calores. Já a sede ombreava com a fome.
E nem verde nem carne, tudo se consumira, do sol ao solo. E os seres
ganharam fraqueza: os bichos vitamínimos, as plantas franzininhas.
Até Eulália aconteceu de adoecer. Magra de se contar mais ossos que
os que realmente detinha. E já nem forças tinha para sofrer.
Carecia de urgente substância.
Quando
soube do estado de Eulália, o moço se encheu de gravidade e mandou
convocar a aldeia de Nkulumazi. À praça cheia, ele anunciou: –
Senhores, eu vou ser pescador! Digo, quem sabe.
E
adiantou: não houvesse mais aflição de peixe e não-peixe. As
panelas iriam, muito próximo, rever esse bicho escamoso, já
preparado em postas, mesmo antes de sair das águas.
– Das
águas? Quais elas? Mais risos. Pescasse ele em seu próprio suor.
Pois não havia nem rio nem lagoa que restasse. Sinhorito apontou os
céus, acima da cabeça.
– Vou
lá, vou subir às águas de lá.
Entrou
no barco e ajeitou-o em posição vertical, proa virada ao
firmamento. Face ao espanto geral, Sinhorito começou a remar. Os
remos cruzavam o ar, vincados no vazio. As bocas abertas, em multidão
de exclamações, se inexplicavam: o barco subia em invisível
afluente de nuvem. Os remos, mais e mais, semelhavam asas. E o barco
transparecia em ave. Até que as nuvens engoliram aquela inteira
visão. Então, alguém gritou: – Venham, ver. Vejam, Sinhorito que
sobe! Mas já ele se extinguia, gradualmente nulo. De pois, se
apagou, ponto no infinito.
– Onde
ele está? Foi, nunca mais desceu. Ainda esperaram que Sinhorito
tombasse, desamparado, mais sua embarcação. Como nada sucedesse, um
por um, os aldeões regressaram a suas casas. Ficou Eulália, só e
sozinha. E ali na praça ela montou espera de um acontecimento.
A
mulher olhava o céu, fosse sol, fosse estrelas. Mas Sinhorito não
descia. Nem ele nem a chuva que se propôs buscar. E ainda menos um
qualquer peixe. Vieram buscá-la.
Vieram
familiares, veio o chefe dos Correios. Puxaram-na, força contra a
vontade. Eulália contrariou os intentos. Apontava, desapontada, o
vasto céu.
– Há-de
vir, há-de voltar.
Que
ela jurara não o abandonar lá, onde há tanto que remar. Mas o
cunhado maior interpôs proibição: nem sonhasse. Sinhorito era
louco. A moça esquecesse que o fulano existira, fizera ou sonhara.
Eulália parecia conformada. Mas, por dentro, ela arrumara segredo:
construiria um barco, ao modo que Sinhorito fizera. Foi juntando pau
e tábua, às escondidas.
– Um
dia, quem sabe, um dia. – repetia enquanto acarretava materiais.
Foi
tudo descoberto, num entretanto. Pelas fúrias tudo foi ardido.
Queimavam-se as madeiras como se se eliminasse um foco de
impurificação.
Eulália,
entretanto, regressara à serenidade. Parecia ter cancelado seu
delírio. Ou ganhara juízo mais calmo? Só os olhos grandes
vasculhavam as nuvens enquanto passeava pelos campos. Um dia, porém,
ela entrou, em alvoroço, pela cozinha. Anunciou: – Caíram duas
chuvinhas do céu.
Riram-se.
Como chovem só duas unidades, gotas de contar por dedos de camaleão?
A mulher insistiu, gritou, empurrou. Já todos na varanda, apontou
entre os capins os dois olhos de Sinhorito. Haviam caído do céu
como dois frutos de carne. E estavam esbugalhados, espantados com
coisa vista lá de onde tombaram.
A
mulher, escapando dos braços que a continham, correu a apanhar o
achado. Mas quando ainda se debruçava, o céu se abriu em
relampejos. E choveu, chuva gorda, farta, despenteada trança de água
no colo do universo. E peixes, aos cardumes, resvalaram dos céus.
É
esta história que, agora, Eulália conta quando, na aldeia, os
outros lhe pedem para falar do dia que choveu peixe. E riem-se do
pasmo ao espasmo. Com a fartura de quem sabe da magreza de suas
vidas. Vale não haver escassez de loucos. Uns seguindo-se aos
outros, em rosário. Como contas de missanga, alinhadas no fio da
descrença.
Mia
Couto, in O fio das missangas
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