domingo, 25 de dezembro de 2016

Os avós de Tom

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Os dois velhinhos esforçavam-se cada qual por chegar mais depressa à porta da casa. Disputavam por qualquer motivo; sentiam o prazer e a necessidade da disputa.
Atrás deles, movendo-se com passos iguais e vagarosos, vinham o velho Tom Joad e seu filho Noah, o primogênito, alto, e tranquilo e extravagante, que andava sempre com um aspecto de pasmo nas faces, calmo e perplexo. Nunca esteve irritado, colérico, na vida. Olhava admirado as pessoas encolerizadas, como uma pessoa normal olha um louco. Noah movia-se devagar, raramente falava, e quando o fazia era com tal lentidão que os que não o conheciam bem julgavam-no um idiota. Era pouco orgulhoso, e não tinha problemas sexuais. Trabalhava e dormia seguindo um ritmo curioso que, não obstante, satisfazia-o. Gostava imensamente de sua gente, mas jamais lhe demonstrava o seu amor. Embora o observador não pudesse dizer por quê, Noah dava a impressão de que era um aleijado; desfigurado do corpo, da cabeça, das pernas ou apenas do espírito, a verdade é que ninguém poderia lhe apontar um membro deformado. O velho Tom Joad pensava que sabia por que Noah era assim, mas o velho Tom Joad tinha vergonha de dizê-lo, e jamais o disse. Na noite em que Noah nasceu, seu pai, apavorado com a distensão das coxas da mulher, sozinho em casa, horrorizado com os gritos agudos do sofrimento dela, ficou louco de apreensão. Usando suas próprias mãos, seus dedos fortes como fórceps, puxou e deu uma torção na criança. A parteira, chegando tarde demais, foi encontrar a cabeça do menino fora da posição normal, o pescoço distendido, o corpo torcido; e então ela recolocou-a no lugar e moldou com as mãos o corpinho frágil. O velho Tom Joad sempre se lembrava dessa cena e sentia vergonha ao recordá-la. E ele era mais carinhoso com Noah que com os outros filhos. Na face larga, olhos muito apartados um do outro, queixo alongado e frágil, o velho pensava ver ainda a figurinha arqueada e retorcida do recém-nascido. Noah poderia fazer o que quisesse, sabia ler e escrever, trabalhar ou ficar cismando o que quisesse, mas ele jamais parecia dar importância a essas coisas; não se importava com coisa alguma, não o atraía nada do que as outras pessoas precisavam e queriam. Ele vivia enclausurado numa torre de silêncio, de onde olhava para fora com olhos calmos. Era um estranho para todos, mas não podia ser considerado um solitário.
Os quatro vinham chegando pelo terreiro e o avô perguntava:
Onde tá ele? Diabo, onde é que ele está?
E seus dedos exploravam os botões da calça e esqueciam-nos para remexerem nos bolsos. Depois, ele viu seu neto, Tom, parado à porta. Estacou e fez com que os outros, que vinham atrás dele, também estacassem. Seus olhinhos brilhavam maliciosos.
Vejam só — disse. — Um que teve engaiolado. Fazia tempo que um Joad não ia na cadeia. — Seus pensamentos deram uma reviravolta. — Prenderam ele injustamente. Fez o que eu também fazia. Esses filho da puta não tinha razão de prender ele. — Seus pensamentos deram novo salto. — E o velho Turnbull, esse zorrilho fedorento, pensando como ia te matar quando ocê saísse da prisão! Diss’que tinha sangue dos Hatfield. Bem, eu também não deixei ele sem resposta. Disse assim pra ele: olhe, não se meta com os Joad, ouviu? Eu tenho é sangue dos MacCoy, tá ouvindo? Meta-se com o Tommy e ocê vai se arrepender. Pego no rifle e te dou é um tiro no rabo. E aí ele ficou com medo.
A avó, sem prestar atenção às palavras do avô, continuou a berrar: “Com Deus, pela vitória!”
O avô chegou-se a Tom e deu-lhe um tapinha no peito, seus olhinhos contemplando-o com afeto e orgulho.
Como vai, Tommy?
Tô muito bem — disse Tom. — E o senhor?
Cheio de mijo e de vinagre — disse o avô.
Seu pensamento voou outra vez. — É como eu disse, eles não iam ter o Tommy engaiolado por muito tempo. Sempre falei: o Tommy vai dar o fora daquela cadeia, vocês vão ver, vai sair que nem um touro derrubando uma cerca. E ocê fez mesmo isso. Bem, sai daí que eu tô com fome. — Foi entrando, sentou-se à mesa, encheu o prato com carne de porco, pegou duas grossas fatias de pão e botou-as também no prato e espargiu sobre tudo isso o molho gorduroso. E antes que os outros começassem a comer, já ele estava de boca cheia.
Tom fez-lhe um trejeito afetuoso.
Esse velho não vale nada, mesmo — disse. Mas o avô estava com a boca tão cheia que nem sequer gaguejar ele podia, mas seus olhos maus sorriram e ele meneou a cabeça violentamente.
A avó disse pomposamente:
Nunca existiu homem mais perverso que o teu avô, Tom. Ele vai direitinho pro inferno, que Deus seja louvado. Agora até automóvel ele quer guiar, mas isso eu não deixo — falou com desdém.
O avô engasgou-se, deixou cair uma boa porção de comida mastigada nas pernas e tossiu fracamente.
A avó sorriu para Tom.
É um trapalhão, né? — observou, com inflexão satisfeita.
Noah estava parado no patamar e olhava Tom, e seus olhos apartados pareciam não o ver. Suas feições eram inexpressivas. Tom disse:
Como é que ocê vai, Noah?
Bem — falou Noah. — E ocê, como vai? — Não era grande coisa, mas era algo confortante.
A mãe enxotou as moscas de sobre o prato de molho de carne.
Não tem lugar pra todo mundo sentar — disse. — É melhor cada um encher o prato e sentar onde puder. No quintal ou em outro lugar qualquer.
John Steinbeck, in As vinhas da ira

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