Os dois velhinhos
esforçavam-se cada qual por chegar mais depressa à porta da casa.
Disputavam por qualquer motivo; sentiam o prazer e a necessidade da
disputa.
Atrás deles,
movendo-se com passos iguais e vagarosos, vinham o velho Tom Joad e
seu filho Noah, o primogênito, alto, e tranquilo e extravagante, que
andava sempre com um aspecto de pasmo nas faces, calmo e perplexo.
Nunca esteve irritado, colérico, na vida. Olhava admirado as pessoas
encolerizadas, como uma pessoa normal olha um louco. Noah movia-se
devagar, raramente falava, e quando o fazia era com tal lentidão que
os que não o conheciam bem julgavam-no um idiota. Era pouco
orgulhoso, e não tinha problemas sexuais. Trabalhava e dormia
seguindo um ritmo curioso que, não obstante, satisfazia-o. Gostava
imensamente de sua gente, mas jamais lhe demonstrava o seu amor.
Embora o observador não pudesse dizer por quê, Noah dava a
impressão de que era um aleijado; desfigurado do corpo, da cabeça,
das pernas ou apenas do espírito, a verdade é que ninguém poderia
lhe apontar um membro deformado. O velho Tom Joad pensava que sabia
por que Noah era assim, mas o velho Tom Joad tinha vergonha de
dizê-lo, e jamais o disse. Na noite em que Noah nasceu, seu pai,
apavorado com a distensão das coxas da mulher, sozinho em casa,
horrorizado com os gritos agudos do sofrimento dela, ficou louco de
apreensão. Usando suas próprias mãos, seus dedos fortes como
fórceps, puxou e deu uma torção na criança. A parteira, chegando
tarde demais, foi encontrar a cabeça do menino fora da posição
normal, o pescoço distendido, o corpo torcido; e então ela
recolocou-a no lugar e moldou com as mãos o corpinho frágil. O
velho Tom Joad sempre se lembrava dessa cena e sentia vergonha ao
recordá-la. E ele era mais carinhoso com Noah que com os outros
filhos. Na face larga, olhos muito apartados um do outro, queixo
alongado e frágil, o velho pensava ver ainda a figurinha arqueada e
retorcida do recém-nascido. Noah poderia fazer o que quisesse, sabia
ler e escrever, trabalhar ou ficar cismando o que quisesse, mas ele
jamais parecia dar importância a essas coisas; não se importava com
coisa alguma, não o atraía nada do que as outras pessoas precisavam
e queriam. Ele vivia enclausurado numa torre de silêncio, de onde
olhava para fora com olhos calmos. Era um estranho para todos, mas
não podia ser considerado um solitário.
Os quatro vinham
chegando pelo terreiro e o avô perguntava:
— Onde tá ele?
Diabo, onde é que ele está?
E seus dedos
exploravam os botões da calça e esqueciam-nos para remexerem nos
bolsos. Depois, ele viu seu neto, Tom, parado à porta. Estacou e fez
com que os outros, que vinham atrás dele, também estacassem. Seus
olhinhos brilhavam maliciosos.
— Vejam só —
disse. — Um que teve engaiolado. Fazia tempo que um Joad não ia na
cadeia. — Seus pensamentos deram uma reviravolta. — Prenderam ele
injustamente. Fez o que eu também fazia. Esses filho da puta não
tinha razão de prender ele. — Seus pensamentos deram novo salto. —
E o velho Turnbull, esse zorrilho fedorento, pensando como ia te
matar quando ocê saísse da prisão! Diss’que tinha sangue dos
Hatfield. Bem, eu também não deixei ele sem resposta. Disse assim
pra ele: olhe, não se meta com os Joad, ouviu? Eu tenho é sangue
dos MacCoy, tá ouvindo? Meta-se com o Tommy e ocê vai se
arrepender. Pego no rifle e te dou é um tiro no rabo. E aí ele
ficou com medo.
A avó, sem prestar
atenção às palavras do avô, continuou a berrar: “Com Deus, pela
vitória!”
O avô chegou-se a
Tom e deu-lhe um tapinha no peito, seus olhinhos contemplando-o com
afeto e orgulho.
— Como vai,
Tommy?
— Tô muito bem —
disse Tom. — E o senhor?
— Cheio de mijo e
de vinagre — disse o avô.
Seu pensamento voou
outra vez. — É como eu disse, eles não iam ter o Tommy engaiolado
por muito tempo. Sempre falei: o Tommy vai dar o fora daquela cadeia,
vocês vão ver, vai sair que nem um touro derrubando uma cerca. E
ocê fez mesmo isso. Bem, sai daí que eu tô com fome. — Foi
entrando, sentou-se à mesa, encheu o prato com carne de porco, pegou
duas grossas fatias de pão e botou-as também no prato e espargiu
sobre tudo isso o molho gorduroso. E antes que os outros começassem
a comer, já ele estava de boca cheia.
Tom fez-lhe um
trejeito afetuoso.
— Esse velho não
vale nada, mesmo — disse. Mas o avô estava com a boca tão cheia
que nem sequer gaguejar ele podia, mas seus olhos maus sorriram e ele
meneou a cabeça violentamente.
A avó disse
pomposamente:
— Nunca existiu
homem mais perverso que o teu avô, Tom. Ele vai direitinho pro
inferno, que Deus seja louvado. Agora até automóvel ele quer guiar,
mas isso eu não deixo — falou com desdém.
O avô engasgou-se,
deixou cair uma boa porção de comida mastigada nas pernas e tossiu
fracamente.
A avó sorriu para
Tom.
— É um
trapalhão, né? — observou, com inflexão satisfeita.
Noah estava parado
no patamar e olhava Tom, e seus olhos apartados pareciam não o ver.
Suas feições eram inexpressivas. Tom disse:
— Como é que ocê
vai, Noah?
— Bem — falou
Noah. — E ocê, como vai? — Não era grande coisa, mas era algo
confortante.
A mãe enxotou as
moscas de sobre o prato de molho de carne.
— Não tem lugar
pra todo mundo sentar — disse. — É melhor cada um encher o prato
e sentar onde puder. No quintal ou em outro lugar qualquer.
John Steinbeck,
in As vinhas da ira
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