(a
Pedro Saad)
1
– Vou
no domingo – digo. – Há um voo direto para Barcelona.
– Não
– diz Pedro.
– Não?
– No
domingo você irá, iremos, a Guaiaquil. E dali....
Dou
uma risada.
–
Escuta – diz Pedro, e eu:
– Não
posso ficar mais nenhum dia. Tenho que...
– Você
vai me escutar?
2
Quando
comento com Alejandra a mudança dos planos, ela diz:
– Então
você vai ver Adão e Eva.
Fuma
e diz:
– Eu
quero morrer assim.
3
Na
península de Santa Elena, que se chamava Zumpa, o tempo é quase
sempre cinzento. Não longe daqui, mais ao norte, o mundo se parte em
dois, de uma só vez. Aqui o tempo se parte. Metade do ano é sol e a
outra metade é cinza.
Caminhamos
pela terra empoeirada. Pedro me explica que há milhares de anos o
mar vinha até essas terras. Basta escavar um pouco e aparecem
conchas do mar. Os ventos do sul deixaram a península árida. Os
ventos e o petróleo que se descobriu por aqui. Também as cozinhas
de Guaiaquil, porque os bosques de guayacán foram parar nos seus
fogões e, não faz muito tempo, meio século apenas, cobriam este
deserto e serviam para fazer a oferenda de incenso de pau-santo aos
deuses. Da vegetação sobrou apenas esse mato baixo, arbustos cheios
de espinhos que servem para espetá-lo e para que você fique entre
essas máquinas que procuram petróleo – e o resto é uma imensidão
de pó e nada mais.
4
– É
aqui – diz Pedro, e levanta a tampa de madeira. Estão quase à
flor da terra, metidos em dois num pequeno buraco.
Olhamos
em silêncio e o tempo passa.
Estão
abraçados. Ele, de boca para baixo. Um braço e uma perna dela
debaixo dele. Uma mão dele sobre o púbis dela. A perna dele a
cobre.
Uma
grande pedra achata a cabeça do homem e outra, o coração da
mulher. Há uma pedra grande sobre o sexo dela e outra sobre o sexo
dele.
Olho
a cabeça da mulher apoiada ou refugiada nele, sorrindo, e comento
que tem a cara luminosa, cara de beijo.
– Cara
de espanto – contradiz Pedro. – Ela viu os assassinos e ergueu o
braço. Foram mortos com essas pedras.
Olho
o braço levantado. A mão protegeu os olhos de alguma súbita ameaça
ou mau sonho, enquanto o resto do corpo seguia dormindo, enroscado no
corpo dele.
– Está
vendo? – diz Pedro. – Quebraram a cabeça dele com esta pedra.
Mostra-me
a teia de aranha na rachadura do crânio do homem e diz:
–
Pedras grandes como essas não são
encontradas por aqui. Trouxeram de longe para matá-los. Quem sabe de
onde as trouxeram?
Estão
abraçados há milhares de anos. Os arqueólogos dizem oito mil anos.
Antes do tempo dos pastores e dos lavradores. Dizem que a argila
impermeável da península conservou os seus ossos intactos.
Ficamos
olhando e passa o tempo. Sinto o sol brilhando entre o céu sem cor e
a terra quente e sinto que esta península de Zumpa ama os seus
amantes e que por isso soube guardá-los em seu ventre e não os
comeu.
E
sinto outras coisas que não entendo e que me deixam tonto.
5
Estou
tonto e nu.
– Eles
crescem – digo.
– E
só o começo. Espera e verá – adverte Pedro, enquanto o carro se
dirige para a costa entre nuvens de pó.
E
eu sei que me perseguirão.
Magdalena
os viu e gritou quando ia embora.
6
– Foram
descobertos por uma mulher – diz Pedro. – Uma arqueóloga chamada
Karen. Estão tal qual ela os encontrou há dois anos e meio.
Espero
que não venham despertá-los. Faz oito mil anos que dormem juntos.
Que
farão aqui? Um museu?
– Algo
assim – sorri Pedro. – Um museu... por que não um templo?
Penso:
“Sua casa é esse buraquinho e ficou invulnerável. Quantas noites
cabem dentro de uma noite tão longa?”
Estremeço,
pressentindo o supershow dos amantes de Zumpa nas mãos dos tour
operators, uma experiência inesquecível, um tesouro da
arqueologia mundial, câmeras e filmadoras escoltadas por enxames de
turistas compradores de emoções. Penso no belo corpo que eles
formam no longo abraço dos anos e nos tantos olhos sujos que não os
merecerão. Logo em seguida, acuso-me de egoísta e um pouco de
vergonha me sobe na cara.
7
Comemos
no litoral, na casa de Júlio. Servem um bom vinho, que aparece na
mesa como milagre; sei que o peixe está saboroso e que a conversa
vale a pena, mas estou ali como se não estivesse. Uma parte de mim
bebe, come e escuta, e de vez em quando diz algo, enquanto a outra
parte anda vagando pelos ares e fica imóvel frente ao pássaro que
nos observa através da janela. Todo meio-dia esse passarinho vem,
pousa num galhinho e observa enquanto dura o almoço.
Depois
me estendo numa rede ou me deixo cair nela. O mar canta baixinho para
mim. Eu abro você, eu descubro você, eu faço você nascer,
canta-me o mar, ou por sua boca sussurram aqueles dois que vêm antes
da história e o inauguram. As ramagens atravessadas pela brisa
repetem a melodia. Antigos ares, que tão bem conheço, me recolhem,
me envolvem e me embalam. Festa e perigo num eterno desenrolar...
–
Levanta, dorminhoco!
Coloco
as mãos frente aos olhos para protegê-los.
A
súbita voz de Pedro devolve-me ao mundo.
8
– Não
– diz Karen. – Não os mataram. As pedras foram colocadas
posteriormente. Pedro insinua um protesto.
– As
pedras teriam rolado – insiste a arqueóloga. – Se elas tivessem
sido jogadas, teriam rolado. Elas estariam nos lados e não em cima.
Estão cuidadosamente colocadas sobre os corpos.
–
Mas... e essa parte do crânio quebrada?
– É
muito posterior. Quem sabe algum carro ou caminhão estacionou sobre
eles. Quando os descobrimos, estavam assim, a um palmo da superfície.
Somente ossos muito antigos podem quebrar-se como louça.
Pedro
a olha, desarmado. Eu queria perguntar-lhe o que sentiu quando os
descobriu, mas fico como um bobo e não pergunto nada.
– As
pedras foram colocadas quando os enterraram, para protegê-los –
continuou Karen. – Neste lugar encontramos um cemitério. Havia
muitos esqueletos e não apenas os dos... dos...
–
Amantes – digo.
–
Amantes? – diz. – Sim, é assim que
os chamam. Os amantes de Zumpa. É um nome simpático.
– Mas
encontraram também restos de casas – diz Pedro. – E de comida:
conchas de mariscos, ostras. Talvez enterrassem os mortos em suas
casas, como outras tribos que...
–
Talvez – admite Karen. – Não é
muito o que sabemos.
– Ou
pode haver uma diferença no tempo, não é? Uma diferença de
milhares de anos entre o cemitério e as casas. Os amantes podem ser
muito posteriores ou anteriores aos demais esqueletos.
–
Talvez – diz Karen –, mas duvido.
Ela
nos serve café, enquanto seus filhos correm atrás de um cachorro, e
nos explica que não é possível remover esses ossos depois de tanto
tempo.
– Não
tocamos neles – diz – para não despedaçar tudo. Que eu saiba, é
a primeira vez que descobrem um casal enterrado assim. A descoberta
pode ter certo valor científico. Vieram os ossólogos, como os
chamam por aqui. Eles confirmaram que se trata de um homem e uma
mulher e que eram jovens quando morreram. Tinham entre vinte e vinte
e cinco anos. Os... ossólogos dizem que os esqueletos correspondem
todos ao mesmo período.
– E
o carbono catorze? – pergunta Júlio. – Fizeram essas provas.
–
Enviamos aos Estados Unidos outros ossos
do mesmo cemitério. O carbono catorze retificado revelou uma
antigüidade de seis a oito mil anos. Com os ossos dos... amantes não
é possível uma análise. Só enviamos um dente que arrancamos do
homem. O laboratório analisou-o. Termoluminescência, os senhores
sabem. A resposta não serve para nada. Dá uma antiguidade de seis a
onze mil anos. Se soubéssemos, teríamos deixado o dente em paz.
Pedro
esperava esta oportunidade.
–
Suponhamos – diz, triunfal – que
dentro de muito, muito tempo, os técnicos analisassem com os mesmos
métodos os restos de nossa civilização. Encontrariam maços de
Marlboro no Coliseu de Roma.
Karen,
sentindo até onde ia a conversa, dá uma boa risada franca e depois,
na segunda xícara de café, adverte-nos:
– Eu
não sei se vocês vão gostar do que eu vou dizer.
Olha
para nós três, medindo-nos sem pressa e baixando a voz, como quem
dita uma sentença secreta, explica:
– Eles
não morreram abraçados. Foram enterrados assim. O motivo, não se
sabe. Nunca ninguém saberá por que os enterraram assim. Talvez
porque fossem marido e mulher, mas isso não basta. Por que não os
enterraram como a outros casais? Não se sabe. Talvez tenham morrido
ao mesmo tempo. Não há sinais de violência nos ossos. Talvez
tenham se afogado. Estavam pescando e afogaram-se. Talvez. Por algum
motivo, que nunca saberemos, os enterraram abraçados. Não morreram
assim, nem os mataram. Nós os encontramos em sua tumba, não em sua
casa.
Vamos
caminhando pelo areal, enquanto a noite cai. O mar brilha além das
dunas.
– Os
cientistas afirmam – diz Pedro – que há milhares de anos não
poderia haver amantes num gru po de pescadores seminômades, que não
conheciam a propriedade e... Eu acho que hoje é que não há lugar
para eles.
Continuamos
calados, os três, olhando a areia.
Eu
penso na sua grandeza, tão pequenininhos, como nós, e no seu
mistério. Mais misterioso que o grande pássaro de Nazca, penso.
Como símbolo, fez mais parte de mim do que a cruz, penso. E vou
pensando: monumento mais da América do que a fortaleza de Machu
Pichu ou as pirâmides do sol e da lua.
–
Alguma vez vocês viram alguém que
tivesse morrido afogado? – pergunta Júlio.
E
segue:
– Eu
já. Os afogados ficam contraídos, com o corpo na posição de...
horror, e quando os tiram da água estão mais rígidos do que
madeira. Se tivessem morrido afogados, ninguém conseguiria
abraçá-los como estão.
– E
se não tivessem se afogado? Havia outras maneiras de morrer.
– Eu
também não acredito – diz-me Júlio. – Os mortos se endurecem
rápido. Eu não sei... – vacila. – Karen sabe. Ela sabe, mas...
Não sei. Não creio que... Estão numa posição tão natural.
Ninguém teria sido capaz de enterrá-los assim. O abraço é tão
verdadeiro... Não é mesmo?
– Eu
acredito neles – digo.
– Em
quem?
– Neles
– digo.
9
Malditos
amantes de Zumpa que não me deixam dormir.
Levanto-me
no meio da noite. Vou para a sacada, respiro fundo, abro os braços.
E
os vejo, traídos pela lua, em algum ponto do ar ou da paisagem. Vejo
os homens nus que se arrastam em silêncio pelo mangue e atacam
armados de punhais de pedra negra ou ossos afiados de tubarão. Vejo
o sobressalto dela e o sangue. Depois vejo os verdugos colocando
sobre os corpos as pesadas pedras que trouxeram de longe. Os
primeiros agentes da ordem ou os primeiros sacerdotes de um deus
inimigo colocam uma pedra sobre a cabeça dele, outra sobre o coração
dela e uma pedra sobre cada sexo, para impedir a saída dessa
fumacinha que baila no ar, fumacinha enebriante, fumacinha de loucura
que põe o mundo em perigo – e sorrio, sabendo que não há pedra
que possa com ela.
10
Na
manhã seguinte, a volta.
A
vegetação cresce à medida que me distancio do deserto e no ar vem
chegando o cheiro do verde ao entrar no luminoso mundo molhado de
Guaiaquil. Acompanham-me, para sempre, aqueles que melhor morreram.
Eduardo
Galeano, in Vagamundo
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