sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

O resto é mentira

(a Pedro Saad)
1
Vou no domingo – digo. – Há um voo direto para Barcelona.
Não – diz Pedro.
Não?
No domingo você irá, iremos, a Guaiaquil. E dali....
Dou uma risada.
Escuta – diz Pedro, e eu:
Não posso ficar mais nenhum dia. Tenho que...
Você vai me escutar?

2
Quando comento com Alejandra a mudança dos planos, ela diz:
Então você vai ver Adão e Eva.
Fuma e diz:
Eu quero morrer assim.

3
Na península de Santa Elena, que se chamava Zumpa, o tempo é quase sempre cinzento. Não longe daqui, mais ao norte, o mundo se parte em dois, de uma só vez. Aqui o tempo se parte. Metade do ano é sol e a outra metade é cinza.
Caminhamos pela terra empoeirada. Pedro me explica que há milhares de anos o mar vinha até essas terras. Basta escavar um pouco e aparecem conchas do mar. Os ventos do sul deixaram a península árida. Os ventos e o petróleo que se descobriu por aqui. Também as cozinhas de Guaiaquil, porque os bosques de guayacán foram parar nos seus fogões e, não faz muito tempo, meio século apenas, cobriam este deserto e serviam para fazer a oferenda de incenso de pau-santo aos deuses. Da vegetação sobrou apenas esse mato baixo, arbustos cheios de espinhos que servem para espetá-lo e para que você fique entre essas máquinas que procuram petróleo – e o resto é uma imensidão de pó e nada mais.

4
É aqui – diz Pedro, e levanta a tampa de madeira. Estão quase à flor da terra, metidos em dois num pequeno buraco.
Olhamos em silêncio e o tempo passa.
Estão abraçados. Ele, de boca para baixo. Um braço e uma perna dela debaixo dele. Uma mão dele sobre o púbis dela. A perna dele a cobre.
Uma grande pedra achata a cabeça do homem e outra, o coração da mulher. Há uma pedra grande sobre o sexo dela e outra sobre o sexo dele.
Olho a cabeça da mulher apoiada ou refugiada nele, sorrindo, e comento que tem a cara luminosa, cara de beijo.
Cara de espanto – contradiz Pedro. – Ela viu os assassinos e ergueu o braço. Foram mortos com essas pedras.
Olho o braço levantado. A mão protegeu os olhos de alguma súbita ameaça ou mau sonho, enquanto o resto do corpo seguia dormindo, enroscado no corpo dele.
Está vendo? – diz Pedro. – Quebraram a cabeça dele com esta pedra.
Mostra-me a teia de aranha na rachadura do crânio do homem e diz:
Pedras grandes como essas não são encontradas por aqui. Trouxeram de longe para matá-los. Quem sabe de onde as trouxeram?
Estão abraçados há milhares de anos. Os arqueólogos dizem oito mil anos. Antes do tempo dos pastores e dos lavradores. Dizem que a argila impermeável da península conservou os seus ossos intactos.
Ficamos olhando e passa o tempo. Sinto o sol brilhando entre o céu sem cor e a terra quente e sinto que esta península de Zumpa ama os seus amantes e que por isso soube guardá-los em seu ventre e não os comeu.
E sinto outras coisas que não entendo e que me deixam tonto.

5
Estou tonto e nu.
Eles crescem – digo.
E só o começo. Espera e verá – adverte Pedro, enquanto o carro se dirige para a costa entre nuvens de pó.
E eu sei que me perseguirão.
Magdalena os viu e gritou quando ia embora.

6
Foram descobertos por uma mulher – diz Pedro. – Uma arqueóloga chamada Karen. Estão tal qual ela os encontrou há dois anos e meio.
Espero que não venham despertá-los. Faz oito mil anos que dormem juntos.
Que farão aqui? Um museu?
Algo assim – sorri Pedro. – Um museu... por que não um templo?
Penso: “Sua casa é esse buraquinho e ficou invulnerável. Quantas noites cabem dentro de uma noite tão longa?”
Estremeço, pressentindo o supershow dos amantes de Zumpa nas mãos dos tour operators, uma experiência inesquecível, um tesouro da arqueologia mundial, câmeras e filmadoras escoltadas por enxames de turistas compradores de emoções. Penso no belo corpo que eles formam no longo abraço dos anos e nos tantos olhos sujos que não os merecerão. Logo em seguida, acuso-me de egoísta e um pouco de vergonha me sobe na cara.

7
Comemos no litoral, na casa de Júlio. Servem um bom vinho, que aparece na mesa como milagre; sei que o peixe está saboroso e que a conversa vale a pena, mas estou ali como se não estivesse. Uma parte de mim bebe, come e escuta, e de vez em quando diz algo, enquanto a outra parte anda vagando pelos ares e fica imóvel frente ao pássaro que nos observa através da janela. Todo meio-dia esse passarinho vem, pousa num galhinho e observa enquanto dura o almoço.
Depois me estendo numa rede ou me deixo cair nela. O mar canta baixinho para mim. Eu abro você, eu descubro você, eu faço você nascer, canta-me o mar, ou por sua boca sussurram aqueles dois que vêm antes da história e o inauguram. As ramagens atravessadas pela brisa repetem a melodia. Antigos ares, que tão bem conheço, me recolhem, me envolvem e me embalam. Festa e perigo num eterno desenrolar...
Levanta, dorminhoco!
Coloco as mãos frente aos olhos para protegê-los.
A súbita voz de Pedro devolve-me ao mundo.

8
Não – diz Karen. – Não os mataram. As pedras foram colocadas posteriormente. Pedro insinua um protesto.
As pedras teriam rolado – insiste a arqueóloga. – Se elas tivessem sido jogadas, teriam rolado. Elas estariam nos lados e não em cima. Estão cuidadosamente colocadas sobre os corpos.
Mas... e essa parte do crânio quebrada?
É muito posterior. Quem sabe algum carro ou caminhão estacionou sobre eles. Quando os descobrimos, estavam assim, a um palmo da superfície. Somente ossos muito antigos podem quebrar-se como louça.
Pedro a olha, desarmado. Eu queria perguntar-lhe o que sentiu quando os descobriu, mas fico como um bobo e não pergunto nada.
As pedras foram colocadas quando os enterraram, para protegê-los – continuou Karen. – Neste lugar encontramos um cemitério. Havia muitos esqueletos e não apenas os dos... dos...
Amantes – digo.
Amantes? – diz. – Sim, é assim que os chamam. Os amantes de Zumpa. É um nome simpático.
Mas encontraram também restos de casas – diz Pedro. – E de comida: conchas de mariscos, ostras. Talvez enterrassem os mortos em suas casas, como outras tribos que...
Talvez – admite Karen. – Não é muito o que sabemos.
Ou pode haver uma diferença no tempo, não é? Uma diferença de milhares de anos entre o cemitério e as casas. Os amantes podem ser muito posteriores ou anteriores aos demais esqueletos.
Talvez – diz Karen –, mas duvido.
Ela nos serve café, enquanto seus filhos correm atrás de um cachorro, e nos explica que não é possível remover esses ossos depois de tanto tempo.
Não tocamos neles – diz – para não despedaçar tudo. Que eu saiba, é a primeira vez que descobrem um casal enterrado assim. A descoberta pode ter certo valor científico. Vieram os ossólogos, como os chamam por aqui. Eles confirmaram que se trata de um homem e uma mulher e que eram jovens quando morreram. Tinham entre vinte e vinte e cinco anos. Os... ossólogos dizem que os esqueletos correspondem todos ao mesmo período.
E o carbono catorze? – pergunta Júlio. – Fizeram essas provas.
Enviamos aos Estados Unidos outros ossos do mesmo cemitério. O carbono catorze retificado revelou uma antigüidade de seis a oito mil anos. Com os ossos dos... amantes não é possível uma análise. Só enviamos um dente que arrancamos do homem. O laboratório analisou-o. Termoluminescência, os senhores sabem. A resposta não serve para nada. Dá uma antiguidade de seis a onze mil anos. Se soubéssemos, teríamos deixado o dente em paz.
Pedro esperava esta oportunidade.
Suponhamos – diz, triunfal – que dentro de muito, muito tempo, os técnicos analisassem com os mesmos métodos os restos de nossa civilização. Encontrariam maços de Marlboro no Coliseu de Roma.
Karen, sentindo até onde ia a conversa, dá uma boa risada franca e depois, na segunda xícara de café, adverte-nos:
Eu não sei se vocês vão gostar do que eu vou dizer.
Olha para nós três, medindo-nos sem pressa e baixando a voz, como quem dita uma sentença secreta, explica:
Eles não morreram abraçados. Foram enterrados assim. O motivo, não se sabe. Nunca ninguém saberá por que os enterraram assim. Talvez porque fossem marido e mulher, mas isso não basta. Por que não os enterraram como a outros casais? Não se sabe. Talvez tenham morrido ao mesmo tempo. Não há sinais de violência nos ossos. Talvez tenham se afogado. Estavam pescando e afogaram-se. Talvez. Por algum motivo, que nunca saberemos, os enterraram abraçados. Não morreram assim, nem os mataram. Nós os encontramos em sua tumba, não em sua casa.
Vamos caminhando pelo areal, enquanto a noite cai. O mar brilha além das dunas.
Os cientistas afirmam – diz Pedro – que há milhares de anos não poderia haver amantes num gru po de pescadores seminômades, que não conheciam a propriedade e... Eu acho que hoje é que não há lugar para eles.
Continuamos calados, os três, olhando a areia.
Eu penso na sua grandeza, tão pequenininhos, como nós, e no seu mistério. Mais misterioso que o grande pássaro de Nazca, penso. Como símbolo, fez mais parte de mim do que a cruz, penso. E vou pensando: monumento mais da América do que a fortaleza de Machu Pichu ou as pirâmides do sol e da lua.
Alguma vez vocês viram alguém que tivesse morrido afogado? – pergunta Júlio.
E segue:
Eu já. Os afogados ficam contraídos, com o corpo na posição de... horror, e quando os tiram da água estão mais rígidos do que madeira. Se tivessem morrido afogados, ninguém conseguiria abraçá-los como estão.
E se não tivessem se afogado? Havia outras maneiras de morrer.
Eu também não acredito – diz-me Júlio. – Os mortos se endurecem rápido. Eu não sei... – vacila. – Karen sabe. Ela sabe, mas... Não sei. Não creio que... Estão numa posição tão natural. Ninguém teria sido capaz de enterrá-los assim. O abraço é tão verdadeiro... Não é mesmo?
Eu acredito neles – digo.
Em quem?
Neles – digo.
9
Malditos amantes de Zumpa que não me deixam dormir.
Levanto-me no meio da noite. Vou para a sacada, respiro fundo, abro os braços.
E os vejo, traídos pela lua, em algum ponto do ar ou da paisagem. Vejo os homens nus que se arrastam em silêncio pelo mangue e atacam armados de punhais de pedra negra ou ossos afiados de tubarão. Vejo o sobressalto dela e o sangue. Depois vejo os verdugos colocando sobre os corpos as pesadas pedras que trouxeram de longe. Os primeiros agentes da ordem ou os primeiros sacerdotes de um deus inimigo colocam uma pedra sobre a cabeça dele, outra sobre o coração dela e uma pedra sobre cada sexo, para impedir a saída dessa fumacinha que baila no ar, fumacinha enebriante, fumacinha de loucura que põe o mundo em perigo – e sorrio, sabendo que não há pedra que possa com ela.

10
Na manhã seguinte, a volta.
A vegetação cresce à medida que me distancio do deserto e no ar vem chegando o cheiro do verde ao entrar no luminoso mundo molhado de Guaiaquil. Acompanham-me, para sempre, aqueles que melhor morreram.
Eduardo Galeano, in Vagamundo

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