Estou
deitada, baixo do céu estreloso, lembrando meu pai. Nesse há muito
tempo, nós nos dedicávamos, à noite, a apanhar frescos. O céu era
uma ardósia riscada por súbitos morcegos, desses caçadores de
perfumes.
—Pai,
eu quero ter uma estrela!
—Estrela,
não: é muito custosa de criar.
Eu
insistia. Queria possuir estrela como as outras meninas tinham
brinquedos, bonecos, cachorros. Aqui, no rés da terra, eu não podia
ter nada. Ao menos, lá no infirmamento, se autenticassem minhas
posses.
—Mas,
pai: o senhor diz que faz criação de estrelas.
—Fazia,
tive que entregar todas. Eram dívidas, paguei com estrelas.
—Eu
sei que sobrou uma.
Meu
pai não respondia nem sim nem talvez. Era um homem vagaroso e vago,
sabedor de coisas sem teor. Dedicava se a serviços anônimos,
propício a nenhum esforço. Dizia:
—Sou
como o peixe, ninguém me viu transpirar.
E
me alertava: veja o musgo, que é o modo do muro ser planta. Quem o
rega, quem o aduba? Nada, ninguém. Há coisas que só paradas é que
crescem.
—É,
minha filha: aprenda com o mineral. Ninguém sabe tanto e tão antigo
como a pedra.
Cuidava
me sozinha, órfã eu, viúvo ele. Ou seria ele o órfão, sofrendo
do mesmo meu parentesco, o falecimento de minha mãe? Perguntas
dessas são incorrigíveis: quem sabe é quem nunca responde. Na
realidade, meu nascimento foi um luto para meu pai: minha mãe trocou
de existir em meu parto. Me embrulharam em capulana com os sangues
todos misturados, o meu novinho em gota e o dela já em cascata para
o abismo. Esse sangue transmexido foi a causa, dizem, de meu pai
nunca mais compridar olho em outra mulher. Em minha toda vida, eu
conheci só aquela exclusiva mão dele, docemente áspera como a
pedra. Aquele côncavo de sua mão era minha gruta, meu reconchego. E
mais um agasalho: as estranhas falas com que ele me nevoava o
adormecer.
—Você
escuta os outros se lamentarem de seu pai.
—Não
escuto, não — menti.
—Dizem
eu não faço nada na vida, não faço nem ideia.
E
prosseguia, se perdoando:
—Mas
eu, minha filha, eu existo mas não sei onde. Nessa bruma que fica
lá, depois do estrangeiro, nessa bruma é que você me vai encontrar
a mim, exato e autêntico. Lá fica minha residência, lá eu sou
grande, lá sou senhor, até posso nascer me as vezes que quiser. Eu
não tenho um aqui.
—Não
diga assim, pai.
—Nesse
outro mundo, filhinha, eu tenho o mais requerido dos serviços: sou
fabricador de estrelas. Sim, faço estrelas por encomenda.
—Verdade,
pai?
—Verdade,
filha. Pergunte a Deus, sou até fornecedor do Paraíso.
Voltávamos
ao quintal, deitávamos a assistir ao céu. Eu já adivinhava, meu
velho não suportava silêncio. Num gesto amplo, ele cobria o inteiro
presépio do horizonte:
—Tudo
isso fui eu que criei.
Eu
estremecia, gostosa de me sentir pequenina, junta a esse deus tão
caseiro. E lá, pai, eles nos vêem a nós? Nada, filha, não nos
vêem. A luz daqui está suja, os homens poeiraram isto tudo.
—Mas
ela nos vê, lá nessa estrela onde foi?
O
pai não respondia. Ele que tinha palavra para tudo, tropeçava
sempre no mesmo silêncio. Minha mãe: dela não se mencionava nunca
nada. Ela não era nem criatura, nem coisa, nem causa. Nem sequer
ausência. E não sendo nem sujeito nem passado, ela escapava a ser
lembrada. Meu velho fugia a sete corações do assunto da saudade.
Como daquela vez que a mão, veloz, enxugou o rosto.
—Você
nunca olhe o céu enquanto estiver chorando. Promete?
—Então,
me dê uma estrela, pai. —Nada, as estrelas não podem ser dadas.
Nunca veja a noite por través da lágrima — insistiu ele,
sério.
Depois,
quando se ergueu lhe veio uma tontura, sua mão procurou apoio no
meio de dançarinas visões. Eu o amparei, raiz segurando a última
árvore.
—Está
doente, pai?
—Qual
doente?! É a terra que não gosta que eu saia de cima dela. A terra
é uma mulher muito ciumenta.
E
outras vezes ele voltou a tontear. Até que uma noite, após estranho
silêncio, ele me disse, esquivo, quase tímido:
—Vá
lá. Escolha uma...
—Posso,
pai?
E
fingi apontar uma estrela, entre os mil cristais do céu. Ele fez
conta que anotava o preciso lugar, marcando no quadro negro o astro
que eu apontara. Me ajeitou a mão na minha fronte e me puxou para
seu peito. Senti o bater do seu coração:
—Escolheu
bem, filha.
E
explicou: aquela que eu indicara seria a luz onde ele iria morrer.
Ninguém lembra o escuro onde nasceu. Todos viemos de fonte obscura.
Por isso, ele preferia a claridade dessa estrela ao escuro de um
qualquer cemitério. Então, por primeira vez, meu pai fez referência
àquela que me anteriorou:
—É
nessa estrela que ela está.
Agora,
deitada de novo nas traseiras da casa, eu volto a olhar essa estrela
onde meu pai habita. Lá onde ele se inventa de estar com sua amada.
E em meus olhos deixo aguar uma tristeza. A lágrima transgride a
ordem paterna. Nesse desfoco, a estrela se converte em barco e o céu
se desdobra em mar. Me chega a voz de meu pai me ordenando que seque
os olhos. Tarde de mais. Já a água é todas as águas e eu me vou
deitando na capulana onde as primeiras mãos me seguraram a
existência.
Mia
Couto, Na berma de nenhuma estrada
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