domingo, 11 de dezembro de 2016

O avô de Tom

Quatro pessoas vinham pelo terreiro. O avô de Tom, à frente. Era um velho magro, vivaz, esfarrapado, de andar apressado, a arrastar a perna direita, do lado que estava deslocado. À medida que vinha chegando, ocupava-se em abotoar as calças, e suas mãos enrugadas e trêmulas tinham dificuldade em realizar a tarefa, porquanto ele enfiara o botão de cima na casa de baixo, e assim o último botão não tinha lugar onde ser enfiado. Trajava calças escuras muito surradas e camisa azul aberta de cima a baixo, deixando à mostra uma camisa de meia muito comprida e também desabotoada. O peito magro e branco, em que se embarafustavam fios de cabelo branco, estava visível através da abertura central da camisa de meia. Ele deixou de incomodar-se afinal com os botões da calça, tratando de fechar a camisa de meia, mas também logo abandonou essa tarefa e foi puxando os suspensórios castanhos. Seu rosto magro era facilmente excitável e os olhinhos eram vivos e maldosos como os de uma criança buliçosa. Era um rosto desagradável, maligno, escarnecedor e rabugento, um rosto que narrava histórias feias. Tinha traços de luxúria, viciosidade, crueldade e impaciência, e acima de tudo satisfação. Era um velho que, quando podia, bebia até cair, comia o mais que podia, quando podia, e falava sempre, sem cessar.
Atrás dele coxeava a avó, uma mulher que sobrevivera apenas porque era tão má quanto o marido. Mantinha-se numa religiosidade aguda, feroz, que era tão viciosa e selvagem quanto o próprio marido. Certa vez, depois do culto, ainda em êxtase, agarrou a espingarda do marido e fez fogo contra ele, com ambos os canos, raspando-lhe as nádegas, e daí em diante ele a respeitou e não tentou torturá-la como as crianças torturam os bichinhos. Coxeando atrás do marido, ela segurava a saia comprida de encontro às pernas e soltava, em tom agudo, o grito de guerra: Com Deus, pela vitória!...
Os dois velhinhos esforçavam-se cada qual por chegar mais depressa à porta da casa. Disputavam por qualquer motivo; sentiam o prazer e a necessidade da disputa.
Atrás deles, movendo-se com passos iguais e vagarosos, vinham o velho Tom Joad e seu filho Noah, o primogênio, alto, e tranquilo e extravagante, que andava sempre com um aspecto de pasmo nas faces, calmo e perplexo. Nunca esteve irritado, colérico, na vida. Olhava admirado as pessoas encolerizadas, como uma pessoa normal olha um louco. Noah movia-se devagar, raramente falava, e quando o fazia era com tal lentidão que os que não o conheciam bem julgavam-no um idiota. Era pouco orgulhoso, e não tinha problemas sexuais. Trabalhava e dormia seguindo um ritmo curioso que, não obstante, satisfazia-o. Gostava imensamente de sua gente, mas jamais lhe demonstrava o seu amor. Embora o observador não pudesse dizer por quê, Noah dava a impressão de que era um aleijado; desfigurado do corpo, da cabeça, das pernas ou apenas do espírito, a verdade é que ninguém poderia lhe apontar um membro deformado. O velho Tom Joad pensava que sabia por que Noah era assim, mas o velho Tom Joad tinha vergonha de dizê-lo, e jamais o disse. Na noite em que Noah nasceu, seu pai, apavorado com a distensão das coxas da mulher, sozinho em casa, horrorizado com os gritos agudos do sofrimento dela, ficou louco de apreensão. Usando suas próprias mãos, seus dedos fortes como fórceps, puxou e deu uma torção na criança. A parteira, chegando tarde demais, foi encontrar a cabeça do menino fora da posição normal, o pescoço distendido, o corpo torcido; e então ela recolocou-a no lugar e moldou com as mãos o corpinho frágil. O velho Tom Joad sempre se lembrava dessa cena e sentia vergonha ao recordá-la. E ele era mais carinhoso com Noah que com os outros filhos. Na face larga, olhos muito apartados um do outro, queixo alongado e frágil, o velho pensava ver ainda a figurinha arqueada e retorcida do recém-nascido. Noah poderia fazer o que quisesse, sabia ler e escrever, trabalhar ou ficar cismando o que quisesse, mas ele jamais parecia dar importância a essas coisas; não se importava com coisa alguma, não o atraía nada do que as outras pessoas precisavam e queriam. Ele vivia enclausurado numa torre de silêncio, de onde olhava para fora com olhos calmos. Era um estranho para todos, mas não podia ser considerado um solitário.
Os quatro vinham chegando pelo terreiro e o avô perguntava:
Onde tá ele? Diabo, onde é que ele está?
E seus dedos exploravam os botões da calça e esqueciam-nos para remexerem nos bolsos. Depois, ele viu seu neto, Tom, parado à porta. Estacou e fez com que os outros, que vinham atrás dele, também estacassem. Seus olhinhos brilhavam maliciosos.
Vejam só — disse. — Um que teve engaiolado. Fazia tempo que um Joad não ia na cadeia. — Seus pensamentos deram uma reviravolta. — Prenderam ele injustamente. Fez o que eu também fazia. Esses filho da puta não tinha razão de prender ele. — Seus pensamentos deram novo salto. — E o velho Turnbull, esse zorrilho fedorento, pensando como ia te matar quando ocê saísse da prisão! Diss’que tinha sangue dos Hatfield. Bem, eu também não deixei ele sem resposta. Disse assim pra ele: olhe, não se meta com os Joad, ouviu? Eu tenho é sangue dos MacCoy, tá ouvindo? Meta-se com o Tommy e ocê vai se arrepender. Pego no rifle e te dou é um tiro no rabo. E aí ele ficou com medo.
John Steinbeck, in As vinhas da ira

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