Conversavam
no trem dois sujeitos. Aproximei-me e ouvi:
— Anda
a vida cheia de contos de Maupassant; infelizmente há pouquíssimos
Guys...
— Por
que Maupassant e não Kipling, por exemplo?
—
Porque a vida é amor e morte, e a arte
de Maupassant é nove em dez um enquadramento engenhoso do amor e da
morte. Mudam-se os cenários, variam os atores, mas a substância
persiste — o amor, sob a única face impressionante, a que culmina
numa posse violenta de fauno incendido de luxúria, e a morte, o
estertor da vida em transe, o quinto ato, o epílogo fisiológico. A
morte e o amor, meu caro, são os dois únicos momentos em que a
jogralice da vida arranca a máscara e freme num delírio trágico.
— ?
— Não
te rias. Não componho frases. Justifico-me... Na vida, só deixamos
de ser uns palhaços inconscientes a mentirmos à natureza quando
esta, reagindo, põe a nu o instinto hirsuto ou acena o “basta”
final que recolhe o mau ator ao pó. Só há grandeza, em suma, e
“seriedade”, quando cessa de agir o pobre jogral que é o homem
feito, guiado e dirigido por morais, religiões, códigos, modas e
mais postiços de sua invenção — e entra em cena a natureza
bruta.
— A
propósito de quê tanta filosofia, com este calor de janeiro?...
O
comboio corria entre São José e Quiririm. Região arrozeira em
plena faina do corte. Os campos em sega tinham o aspecto de cabelos
louros tosados à escovinha. Pura paisagem europeia de trigais.
A
espaços feriam nossos olhos quadros de Millet, em fuga lenta, se
longe, ou rápida, se perto. Vultos femininos de cesta à cabeça,
que paravam a ver passar o trem. Vultos de homens amontoando feixes
de espigas para a malhação do dia seguinte. Carroções tirados a
bois recolhendo o cereal ensacado. E como caía a tarde e a
Mantiqueira já era uma pincelada opaca de índigo a barrar a
imprimadura evanescente do azul, vimos em certo trecho o original do
“Angelus”...
— Já
te digo a propósito de quê vem tanta filosofia.
E,
enfiando os olhos pela janela, calou-se. Houve uma pausa de minutos.
Súbito, apontando um velho saguaraji avultado à margem da linha e
logo sumido para trás, disse:
— A
propósito dessa árvore que passou. Foi ela comparsa no “meu conto
de Maupassant”.
— Conta
lá, se é curto.
O
primeiro sujeito não se ajeitou no banco, nem limpou o pigarro, como
é de estilo. Sem transição foi logo narrando.
— Havia
um italiano, morador destas bandas, que tinha vendola na estrada.
Tipo mal-encarado e ruim. Bebia, jogava, e por várias vezes andou às
voltas com as autoridades. Certo dia — eu era delegado de polícia
— uns piraquaras vieram dizer-me que em tal parte jazia o “corpo
morto” de uma velha, picado a foice.
“Organizei
a diligência e acompanhei-os. ‘É lá naquele saguaraji’,
disseram ao aproximarem-se da árvore que passou. Espetáculo
repelente! Ainda tenho na pele o arrepio de horror que me correu pelo
corpo ao dar uma topada balofa num corpo mole. Era a cabeça da
velha, semioculta sob folhas secas. Porque o malvado a decepara do
tronco, lançando-a a alguns metros de distância.
“Como
por sistema eu desconfiasse do italiano, prendi-o. Havia contra ele
indícios fortes. Viram-no sair com a foice, a lenhar, na tarde do
crime.
“Entretanto,
por falta de provas foi restituído à liberdade, mau grado meu, pois
cada vez mais me capacitava da sua culpabilidade. Eu pressentia
naquele sórdido tipo — e negue-se valor ao pressentimento! — o
miserável matador da pobre velha.”
— Que
interesse tinha no crime?
—
Nenhum. Era o que alegava. Era como
argumentava a logicazinha trivial de toda gente. Não obstante, eu o
trazia de olho, certo de que era o homicida.
“O
patife, não demorou muito, traspassou o negócio e sumiu-se. Eu do
meu lado deixei a polícia e do crime só me ficou, nítida, a
sensação da topada mole na cabeça da velha.
“Anos
depois o caso reviveu. A polícia obteve indícios veementes contra o
italiano, que andava por São Paulo num grau extremo de decadência
moral, pensionista do xadrez por furtos e bebedices. Prenderam-no e
remeteram-no para cá, onde o júri iria decidir da sua sorte.”
— Os
teus pressentimentos...
O
sujeito sorriu com malícia e continuou.
— Não
resistiu, não reagiu, não protestou. Tomou o trem no Brás e veio
de cabeça baixa, sem proferir palavra, até São José; daí por
diante (quem o conta é um soldado da escolta) metia amiúde os olhos
pela janela, como preocupado em ver qualquer coisa na paisagem, até
que defrontou o saguaraji. Nesse ponto armou um pincho de gato e
despejou-se pela janela fora. Apanharam-no morto, de crânio rachado,
a escorrer a couve-flor dos miolos perto da árvore fatal.
— O
remorso!
— Está
aqui o “meu conto de Maupassant”. Tive a impressão dele nas
palavras do soldado da escolta: “Veio de cabeça baixa até São
José, daí por diante enfiou os olhos pela janela até enxergar a
árvore e pinchou-se”. No progresso ingênuo da narrativa li toda a
tragédia íntima daquele cérebro, senti todo um drama psicológico
que nunca será escrito...
— É
curioso! — comentou o outro, pensativamente.
Mas
o primeiro sujeito acendeu o cigarro e concluiu sorridente, com
pausada lentidão:
— O
curioso é que mais tarde um dos piraquaras denunciadores do crime, e
filho da velha, preso por picar um companheiro a foiçadas,
confessou-se também o assassino da velhinha, sua mãe...
— ?
Meu
caro, aquele pobre Oscar Fingal O’ Flahertie Wills Wilde disse
muita coisa, quando disse que a vida sabe melhor imitar a arte do que
a arte sabe imitar a vida.
Monteiro
Lobato, in Contos completos
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