Quando
deu conta do tempo, Maria Pedra foi a correr para o cruzar dos
caminhos, na encosta da Chão Oco, e ali se deitou, saia levantada à
espera que algum macho a encontrasse. Era de Dezembro, ela tinha anos
e era virgem.
E
assim ficou cinco dias e cinco noites, destapada e oferecida até que
um vizinho a trouxe inanimada. Depositou o corpo à porta de casa,
ali onde a praça se enche de luz, avistosa de todos, redonda como a
vozearia da aldeia.
O
que acontecera? Tinham passado tantos, e tantos dela fizeram uso que
ela ficara ofendida, mal-procedida para a vida inteira. Isso dizem
uns. Outros juram que ninguém ousou tocar-lhe. Que ela assim,
estendida e de olhos cerrados, parecia já possuída por forças do
outro mundo. E lhe escapava até, viscosa e amarelenta, uma baba dos
queixos.
Nem
o mais carente e maiúsculo dos másculos desejaria mulher naqueles
escangalhos. Ou ainda, segundo outros escondidos rumores, o vizinho
se tinha despenteado com ela, anoitrevido? Esse vizinho sempre saíra
um mosca-viva, homem com desculpas no cartório.
Mas
a mãe assegurou: ela tinha chegado virgem. Ela mesma confirmara,
espreitando-lhe as partes, abaixo dos pêlos públicos. As marcas de
dentes que trouxe no peito eram mordidelas de bicho, desses tão
noturnos que nunca ninguém esteve desperto para os testemunhar.
Naquelas cinco noites ninguém em casa se mexeu, com medo que fosse
cumprimento de promessa, um preventivo de feitiço.
Pelo
sim pelo enquanto, a família ficou de olho no ventre de Maria Pedra,
alertada para o mais leve arredondar. Passaram-se meses e a moça
mantinha-se magra, retilinda.
Um
suspiro percorreu todos. Se houvesse gravidez, a desconfiança
rondaria entre todos. O culpado poderia ser qualquer um e até irmãos
e tios caberiam entre os suspeitos.
Nove
meses escoaram e, todo esse tempo, a moça não falou uma palavra que
fosse.
No
resto, cumpria os afazeres: casa para parente para aguar, bosque para
lenhar. E, de novo, em cada noite, o sonhado fogo regressava à
cinza: o infinito ciclo do seu inexistir.
Cumpria-se
o último dia de Setembro quando a moça arrumou uns panos, avolumou
com eles uma trouxa e atou esse volume à cintura. Quem a visse
caminhar, no lusco-fulgir da madrugada, diria que Maria Pedra
despertara subitamente grávida. Para onde se descaminhou? Pois se
dirigiu, de novo, ao cruzar dos caminhos e ali se deitou, enroscada,
pteridófita. Foram avisar a mãe. Que a moça sofrera de novo
acesso.
– Vou
lá – disse a mãe, passando um gesto rápido frente ao espelho.
Alisava o ventre que engordara, fruto das preocupações que a filha
lhe trouxera. O que ela sofrera, naqueles nove meses de angústia! E
como se ganhasse mais decisão, repetiu: – Vou lá, antes que seja
tarde.
– Para
ela há muito que já é tarde.
Era
o pai, em murmúrio, num canto da sala. Inválido, o homem vivia
entre o vazar de garrafa e o desarolhar de outra garrafa. O vizinho,
solícito, sossegou-a: – Vá, à vontade. Eu tomo conta aqui do
nosso homem.
E
empurrou o assento e o assentado. O marido bateu com ambas mãos nos
braços da cadeira de rodas. Agredia o seu próprio destino: – Você
devia era arranjar-me uma garrafa de rodas! E voltou a apagar-se,
escuro no recanto escuro. O vizinho fez um sinal para que a dona de
casa se afastasse, rumo aos seus afazeres.
A
mãe cruzou a aldeia. Primeiro, apressada. Queria adiantar-se aos
rumores, enxotar as vergonhas. Mas à medida que ia descendo a
encosta, o seu passo foi esmorecendo.
Vagarosa
como sombra se chegou à filha que se conservava enroscada sobre a
rocha do entroncamento.
–
Venha, minha filha. Volte a casa.
– Agora
não posso – respondeu Maria Pedra.
Uma
tremura na voz? A miúda chorava. Seria dessas inventadas mágoas,
dessas que ela criava apenas para se sentir existente?
–
Venha, traga essas roupas, antes que a
aldeia acorde.
A
mãe puxou pelos panos que nela se enrodilhavam. A moça resistiu, as
duas mulheres se disputaram com violência, até que se envolveram
corpo contra corpo. Houve rasgo e unha: já sangue escorria pelas
pernas da mãe. Foi quando se descortinou, por entre o emaranhado das
roupas, o corpo de um menino, recém-nado. E o choro inaugural de um
novo habitante.
A
mãe ficou anichando o recém-recente no ofegante ventre. As duas
deitadas, lado a lado, alongaram um silêncio.
– Esse
filho é seu, Maria Pedra!
–
Sossegue, mãe. Eu digo que é meu.
Mia
Couto, in O fio das missangas
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