Lançamos
o barco, sonhamos a viagem: quem viaja é sempre o mar.
(Dito
de meu avô Celestiano)
Pois,
lhe digo, minha Dona. É uma pena a senhora andar por aí fatigando
seus olhos pelo mundo. Devia era, logo de manhã, passar um sonho
pelo rosto. É isso que impede o tempo e atrasa a ruga. Sabe o que
faz? Estende-se aí na areia, oblonga-se deitadinha, estica a alma na
diagonal. Depois, fica assim, caladita, rentinha ao chão, até
sentir a terra se enamorar de si. Digo-lhe, Dona: quando ficamos
calados, igual uma pedra, acabamos por escutar os sotaques da terra.
A senhora num certo momento, há-de ouvir um chão marinho, faz conta
é um mar sob a pele do chão. Aproveita esse embalo, Dona Luarmina.
Eu tiro boas vantagens desses silêncios submarinhos. São eles que
me fazem adormecer ainda hoje. Sou criança dele, do mar.
— Lá
criança, sim. Você há muito que esqueceu a idade.
— Sabe
o que dava jeito? Era a gente os dois nos combinarmos, está a
perceber, Dona Luarmina?
—
Ajuíze-se, Zeca.
— Faz
conta somos verbo e sujeito.
— Já
conheço essa sua gramática...
— A
senhora, minha boa Dona, nem sabe quanto enriquece minha retina.
Luarmina
nem destroca resposta. E com razão. Sou um quem, eu? Um caçador de
peixe que nem tem a quem contar suas aventuras. É verdade, Dona, não
posso nem dar lustro nas minhas mentiras. Será que são mentiras? Se
eu, que não testemunhei o que eu próprio relato, acabo me
acreditando? O mar é que tem culpas — pois lá se esbatem os
limites -, tudo ali pode ser. No mar não há palavra, nem ninguém
pede contas à verdade. Como dizia o velho Celestiano: onde sempre é
meio-dia, tudo é noturno.
Volto
à mulher, Dona Luarmina. Nunca ninguém foi tão vizinho. Porque ela
quando não me está nas vistas está-me nos sonhos. Sempre e sempre
essa polposa e carnudona mulher. O rabo foi quem mais lhe cresceu,
cresceu mais que as nádegas. Em tempos, ela acendeu prontidões
masculinas. Mas agora, está apagada. Não para mim que me acendo em
sua presença e ardo em sua ausência.
Ao
fim de cada tarde, me encaminho para sua casa. Engraçado o seu
lugarzinho: só tem traseiras. Quase como a Dona. Porque a gente para
o contornar nem tem que dar a volta. Chega-se lá e estamos logo
atrás. Sento-me num velho tronco e fico olhando a mulher
desfolhando-se: — Mar me quer...
Depois,
digo de mim para mim: quem dera eu meter a mão nos remetentes dela!
Uma dessas noites, estendido na esteira, até sonhei que me
aproximava do assento dela e lhe desenrolava falas, as seguintes:
— Me
deixe apalpar nas suas nádegas, é um instantinho tão brevezito que
a senhora nem precisa esquecer meu atrevimento.
— Qual?
— Como
qual, Dona Luarmina?
— Qual
das nádegas?
— A
arbitrária, Dona. Então a senhora não recorda as contas da
geometria, a soma dos fatores é arbitrária?
Enquanto
falava já minha mão viajava naquelas gorduras vivas dela,
comboiozinho doido ondulando pelas topografias do seu assento. Eu
andava de bicos de mãos pelas reentrâncias dela.
— Que
é isto? O senhor ainda não foi autorizado.
— Essa
minha mão, Dona Luarmina, pertence ao setor informal.
— Você,
Zeca Perpétuo, é que é todo do setor informal.
— A
senhora conhece o ditado, não conhece? Mais vale uma mão no
pássaro...
— Você
é um abusador...
— Isto
são sonhos, só sonhos. Sabe o que sonhei ontem, Dona Luarmina? Pois
lhe conto, não me corte as falas.
A
senhora ia comigo ali ao Baixo da Nuvem e dançava comigo. Dançava
de branco, toda respeitosa. Eu fechava os olhos e, de repente, você
me dizia, baixinho, ao ouvido: — Veja: estou nua como o peixe. Eu
me arrepiava. Nem tinha coragem de abrir os olhos. Sua voz zunzunava
junto à minha orelha:
— Mas,
veja bem: tenho tatuagem, aqui na barriga. Veja com sua mão. Sim,
aí. Mais em baixo, também, na roda da anca, passe o dedo lá, sim.
Isso mesmo, aí. São tatuagens para você não escorregar.
Tudo
aquilo era bonito e fresco de inventar. Mas não pude continuar a
lembrança do sonho. Dona Luarmina me interrompeu e me sacudiu com
sua mão papuda.
—
Cala-se, Zeca. Você já é velhotezito.
Por que sonha ainda essas coisas?
— Sou
velho, o caraças. A senhora que gosta tanto de aves me responda:
penas de pássaro se gastam?
— Mas
o senhor, agora, só voa rente ao chão.
— Aí
é que está, Dona Luarmina: nos embaixos é que está a graça.
Luarmina
não estava para as graças. De vez em quando, ela dispensava um
sorriso. No resto, ela fechava uma tristeza de não ter tido filho.
Quando eu lhe apelidava de flor ela, azeda, voltava à descarga:
— Não
me chame de flor que me dói. A semente é a única pegada da flor. E
eu não deixei filho neste mundo.
— Culpa
não foi sua. Nenhum inseto certo lhe soube pousar. Fosse era eu.
—
Caludas, Zeca.
—
Escute o que eu falo: você, sim, é
flor.
— Está,
sou flor. Mas uma dessas que nunca serviu.
— Você
serviu belezas, Luarmina.
— E
para que servem as belezas? Para nada.
— Veja,
exemplo, só: quem lustra mais o céu? Não é o arco-íris? E, pois,
me diga: qual o serviço que tem o arco-íris?
— Nem
sei lá.
— Tem
o serviço só de fantasiar, de ensinar o céu a sonhar.
Mas
ela voltava ao semimesmo. Eu que a desculpasse. Porque ela se tinha
definitiva como a ruína. E falava:
— Perdi
o tempo, mas o tempo, esse é que não se esquece de mim.
Assim
dizia, apontando as peles envelhecidas do pescoço. E eu, no
conforto: pois o tempo não lhe larga o pé, graças e desgraças a
Deus. Porque sou eu e é o tempo, os dois lhe competindo, Dona
Luarmina. Deixe que seja eu a ganhar. Por amor de Deus, Dona...
— Quer
mesmo me apaladar?
— Se
quero, Dona!
— Então
me desfie uma memória sua, uma verdadeira…
Mia
Couto, in Mar me quer
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