Também
o lobo tem duas e mais de duas almas dentro do peito, e quem deseja
ser um lobo incorre na mesma ignorância do homem da canção: “Feliz
quem voltasse a ser criança!” O homem simpático, mas sentimental,
que entoa a canção do menino ditoso, desejaria também voltar à
Natureza, à inocência, ao princípio, mas esqueceu que nem mesmo as
crianças são felizes, e sim suscetíveis de muitos conflitos, de
muitas desarmonias, de todos os sofrimentos. Para trás, não conduz
a nenhum caminho, nem para o lobo nem para a criança. No princípio
das coisas não há simplicidade nem inocência; tudo o que foi
criado até o que parece mais simples, e já culpável, já complexo,
foi lançado ao sujo torvelinho do desenvolvimento e já não pode,
não poderá nunca mais, nadar contra a corrente. O caminho para a
inocência, para o incriado, para Deus, não se dirige para trás mas
sim para diante; não para o lobo ou a criança, mas cada vez mais
para a culpa, cada vez mais fundamente dentro da encarnação humana.
Nem mesmo com o suicídio, pobre Lobo da Estepe, te livrarás
realmente das dificuldades; tens de percorrer o caminho mais largo,
mais penoso e mais difícil da humana encarnação; frequentemente
terás de multiplicar a tua multiplicidade, complicar ainda mais a
tua complexidade. Em vez de reduzir o teu mundo, de simplificar a tua
alma, terás de recolher cada vez mais mundo, de recolher no futuro o
mundo inteiro na tua alma dolorosamente dilatada, para chegar talvez
algum dia ao fim, ao descanso. O mesmo caminho foi percorrido por
Buda e todos os grandes homens, uns conscientes, outros
inconscientemente, na medida em que a fortuna favorecia a sua busca.
Nascimento significa desunião do todo, limitação, afastamento de
Deus, penosa reencarnação. Volta ao todo, anulação da dolorosa
individualidade, chegar a ser Deus, quer dizer: ter dilatado a alma
de tal forma que se torne possível voltar a conter novamente o todo.
Não se trata aqui do homem conhecido das escolas, da economia
política ou da estatística, nem do homem que aos milhões anda pela
rua e não tem mais importância do que a areia ou a espuma dos
mares: pouco adiantam alguns milhões a mais ou a menos; são
material e nada mais. Não, nós falamos aqui do homem no sentido
elevado do termo, do largo caminho da encarnação humana, do homem
verdadeiramente real, dos imortais. O gênio não é tão raro como
em geral nos parece, nem tão frequente como pretendem as histórias
literárias a história universal e até mesmo os jornais. O Lobo da
Estepe, Harry, segundo nossa opinião, seria gênio bastante para
intentar a aventura da encarnação humana, sem necessidade de trazer
para confrontação, lamentavelmente, a cada dificuldade, o seu
estúpido lobo da estepe. Ê tão estranho e entristecedor que homens
de tais possibilidades surjam como lobos da estepe e com “duas
almas, ai!” e que mostrem tamanha afeição covarde ao burguês. Um
homem capaz de compreender Buda, um homem que tem noção dos céus e
dos abismos da natureza humana, não deveria viver num meio em que
domina o senso comum, a democracia e a educação burguesa. Só por
covardia continua a viver nele, e quando suas dimensões o oprimem,
quando a estreita cela do burguês se torna demasiado apertada, ele
atribui tudo isto ao “lobo” e não quer aperceber-se de que às
vezes o lobo é a sua parte melhor. Tudo o que há de feroz dentro de
si ele o atribui ao lobo e o tem por mau, perigoso c terror dos
burgueses; mas ele que, no entanto, se acredita um artista e supõe
ter sensibilidade, não é capaz de ver que fora do lobo, atrás do
lobo, vivem no seu interior muitas outras coisas: que nem tudo o que
morde é lobo; que dentro de si habitam também a raposa, o dragão,
o tigre, o macaco e a ave do paraíso, e que todo este mundo é um
éden cheio de milhares de seres, formosos e terríveis, grandes e
pequenos, fortes e delicados, mundo asfixiado e cercado pelo mito do
lobo — tanto como o verdadeiro homem que nele há é asfixiado e
preso apenas pela sua aparência de homem, pelo burguês. Imagine-se
um jardim de cem espécies de árvores, com mil variedades de flores,
com cem espécies de frutas e outros tantos gêneros de ervas. Pois
bem: se o jardineiro que cuida deste jardim não conhece outra
diferenciação botânica além do “joio” e do “trigo”, então
não saberá que fazer com nove décimas partes do seu jardim,
arrancará as flores mais encantadoras, cortará as árvores mais
nobres, ou pelo menos ter-lhes-á ódio e as olhará com maus olhos.
Assim faz o Lobo da Estepe com as mil flores de sua alma. O que não
está compreendido na designação pura e simples de “lobo” ou de
“homem” nem sequer merece a sua atenção. E quantas qualidades
ele empresta ao homem! Tudo o que é covarde, símio, estúpido,
mesquinho, desde que não seja muito, diretamente lupino, ele o
atribui ao “homem”, assim como atribui ao “lobo” tudo o que é
forte e nobre, só porque não conseguiu ainda dominá-lo.
Hermann
Hesse, in O lobo da Estepe
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