“Uns
olham para a televisão. Outros olham pela televisão.”
DITO
DE SICRANO
Estranharam
quando, no funeral do avô Sicrano, a viúva Estrelua proclamou:
– Uma
televisão!
– Uma
televisão o quê, avó?
– Quero
que me comprem uma televisão.
Aquilo,
assim, de rompante em plenas orações.
Dela
se esperava mais ajustado desejo, um ensejo solene de tristeza, um
suspiro anunciador do fim. Mas não, ela queria naquele mesmo dia
receber um aparelho novo.
– Mas
o aparelho que vocês tinham avariou?
– Não.
– Como
é isso, então? Foi roubado?
– Não,
foi enterrado.
–
Enterrado?
– Sim,
foi junto com o corpo do vosso falecido pai.
Tudo
havia sido congeminado junto com o coveiro. A televisão, desmontada
nas suas quantas peças, tinha sido embalada no caixão. Era um
requisito de quem ficava, selando a vontade de quem estava indo.
Na
cerimônia, todos se entreolharam. O pedido era estranho, mas ninguém
podia negar. O tio Ricardote ainda teve a lucidez de inquirir: – E
a antena? Esperassem, fez ela com a mão. Tudo estava arquitectado. O
coveiro estava instruído para, após a cerimônia, colocar a antena
sobre a lápide, amarrada na ponta da cruz, em espreitação dos
céus. Aquela mesma antena, feita de tampas de panela, ampliaria as
eletrônicas nos sentidos do falecido. O velho Sicrano, lá em baixo,
captaria os canais. É um simples risco a diferença entre a alma e a
onda magnética. Por razão disso, a viúva Estrelua pediu que não
cavassem fundo, deixassem o defunto à superfície.
– Para
apanhar bem o sinal – explicou a velha.
O
Padre Luciano se esforçou por disciplinar a multidão, ele que
representava a ordem de uma só voz divina. Com uns tantos berros e
ameaças ele reconduziu a multidão ao silêncio. Mas foi sossego de
pouca dura. Logo, Estrelua espreitou em volta, e foi inquirindo os
condoídos presentes: – E o Bibito, onde está? – O Bibito?– se
interrogaram os familiares.
Ninguém
conhecia. Foi o bisneto que esclareceu: Bibito era o personagem da
novela brasileira. A das seis, acrescentou ele, feliz por lustrar
conhecimento.
– E
a Carmenzita que todas as noites nos visita e agora não comparece!
De novo, o bisneto fez luz: mais uma figura de uma telenovela. Só
que mexicana. O filho mais velho tentou apaziguar as visões da avó.
Mas qual Bibito, qual Carmen?! Então os filhos de osso e alma
estavam ali, lágrima empenhada, e ela só queria saber de personagem
noveleira? – Sim, mas esses ao menos nos visitam. Porque a vocês
nunca mais os vimos.
Esses
que os demais teimavam em chamar de personagens, eram esses que
adormeciam o casal de velhotes, noite após noite. Verdade seja
escrita que a tarefa se tornava cada vez mais fácil. Bastava um
repassar de cores e sonos para que as pestanas ganhassem peso. Até
que era só ligar e já adormeciam.
– Quem
vai ligar o aparelho hoje?
– É
melhor não ser você, marido, porque noutro dia adormeceu de pé.
De
novo, o padre invocou a urgência de um silêncio. Que ali havia
tanto filho e mais tanto neto e ninguém conseguia apaziguar a viúva?
Os filhos descansaram o padre. Que sim, que iam conduzi-la dali para
o resguardo da casa. Estrelua bem merecia o reparo de uma solidão. E
prometeram à velha que não precisava de um outro aparelho, que eles
iriam passar a visitá-la, nunca mais a deixariam só. A avó sorriu,
triste. E assim a conduziram para casa.
Aquela
noite, ainda viram a avó Estrelua atravessar o escuro da noite para
se sentar sobre a campa de Sicrano. Deu um jeito na antena como que a
orientá-la rumo à lua.
Depois
passou o dedo pelos olhos a roubar uma lágrima. Passou essa aguinha
pela tampa da panela como se repuxasse brilho. De si para si
murmurou: é para captar melhor.
Ninguém
a escutou, porém, quando se inclinou sobre a terra e disse baixinho:
Hoje é você a ligar, Sicrano. Você ligue que eu já vou
adormecendo.
Mia
Couto, in O fio das missangas
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