segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

Babel

A Torre de Babel (1563), de Pieter Bruegel

Deus sabotou a construção da Torre de Babel simplesmente porque não gostava de espigões, ou arranha-céus, como poeticamente eram denominados em tempos que não vão longe. Hoje, basta o pejorativo de espigões para ver-se o quanto os abominamos — com exceção dos construtores — estranho sinônimo dos demolidores da beleza e da comodidade do mundo. Era tão bom viver à flor da terra...
Mas parece que eles, os construtores, andaram lendo por demais as novelas de ficção científica. Tudo são elevados ou subterrâneos. Ou anda-se minhocando por debaixo da terra ou pairando em alturas. Se ao menos fossem os jardins suspensos da Babilônia... Onde está o nosso querido chão humano? Tudo é tão desnatural!
Quando ainda há pouco estive no Rio, encaminharam-nos diretamente da porta do avião para um túnel, ao fim do qual aconteceu uma escada rolante, depois mais um túnel e mais uma escada, depois a espera de que as nossas bagagens passassem por nós. Era o Rio aquilo?
Não: parecia que estávamos dentro de um conto de Kafka. No hotel perguntou-me o gerente se eu preferia um quarto da frente ou dos fundos. Escolhi um dos fundos porque haveria menos barulho. Engano d’alma! Lá nos fundos havia uma britadeira que trabalhou toda a noite. E, no regresso, puxa! Quanta fila de espera e quanto guichê e quanto elevador! E ainda os cariocas indagavam se eu não achava uma maravilha aquele novo aeroporto... Eu achava a coisa um pesadelo técnico.
A sorte é que andei autografando no Largo do Boticário — um oásis no Rio de hoje, com seus casarões coloniais, com seus lampiões — e tudo aquilo reconstruído ou ressuscitado pela senhora proprietária do local — uma construtora inteligente.
Mário Quintana, in A vaca e o hipogrifo

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