Só
ontem o descobri, atirado atrás de uns livros, o pequeno par de
luvas pretas. Fiquei um instante a imaginar de quem poderia ser, e
logo concluí que sua dona é aquela mulher miúda, de risada clara e
brusca e lágrimas fáceis, que veio duas vezes, nunca me quis dar o
telefone nem o endereço, e sumiu há mais de uma semana. Sim, suas
mãos são assim pequenas, e na última noite ela estava vestida de
escuro, os cabelos enrolados no alto da cabeça. Revejo-a se
penteando, com três grampos na boca; lembro-me de seu riso e também
de suas palavras de melancolia no fim da aventura banal. Eu quis ser
cavalheiro, sair, levá-la em casa. Ela aceitou apenas que eu
chamasse um táxi pelo telefone, e que a ajudasse a vestir o capote;
disse que voltaria...
Talvez
telefone outro dia, e volte; talvez, como aconteceu uma vez, entre
suas duas visitas, fique aborrecida por me telefonar em uma tarde em
que tenho algum compromisso para a noite. “A verdade” — me
lembro dessas palavras de uma tristeza banal — “é que a gente
procura uma aventura assim para ter uma coisa bem fugaz, sem
compromisso, quase sem sentimento; mas ou acaba decepcionada ou
sentimental...” Lembrei-lhe a letra de uma velha música americana:
“I am getting sentimental over you.” Ela riu, conhecia a canção,
cantarolou-a um instante, e como eu a olhasse com um grande carinho
meio de brincadeira, meio a sério, me declarou que eu não era
obrigado a fazer essas caras para ela, e dispensava perfeitamente
qualquer gentileza e me detestaria se eu quisesse ser falso e gentil.
Juntou, quase nervosa, que também não lhe importava o que eu
pudesse pensar a seu respeito; e que mesmo que pensasse o pior, eu
teria razão; que eu tinha todo o direito de achá-la fácil e
leviana, mas só não tinha o direito de tentar fazê-la de tola. Que
mania que os homens têm...
Interrompi-a.
Que ela, pelo amor de Deus, não me falasse mal dos homens; que isso
era muito feio; e que a seu respeito eu achava apenas que era uma
flor, um anjo “y muy buena moza”.
Meu
bom humor fê-la sorrir. Na hora de sair disse que ia me dizer uma
coisa, depois resolveu não dizer. Não insisti. “Telefono.” E
não a vi mais.
Com
certeza não a verei mais, e não ficaremos os dois nem decepcionados
nem sentimentais, apenas com uma vaga e suave lembrança um do outro,
lembrança que um dia se perderá.
Pego
as pequenas luvas pretas. Têm um ar abandonado e infeliz, como toda
luva esquecida pelas mãos. Os dedos assumem gestos sem alma e
todavia tristes. É extraordinário como parecem coisas mortas e ao
mesmo tempo ainda carregadas de toda a tristeza da vida. A parte do
dorso é lisa; mas pelo lado de dentro ficaram marcadas todas as
dobras das falanges, ficaram impressas, como em Verônica, as
fisionomias dos dedos. É um objeto inerte e lamentável, mas tem as
rugas da vida, e também um vago perfume.
O
telefone chama. Vou atender, levo maquinalmente na mão o par de
luvas. A voz é de mulher e hesito um instante, comovido. Mas é
apenas a senhora de um amigo que me lembra o convite para o jantar.
Visto-me devagar, e quando vou saindo vejo sobre a mesa o par de
luvas. Seguro-o um instante como se tivesse na mão um problema; e o
atiro outra vez para trás dos livros, onde estavam antes.
Rubem
Braga, in Ai de ti, Copacabana
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