quarta-feira, 23 de novembro de 2016

Tourist guide

Na outra margem do lago, o arcebispo clama: “Uma maldição ameaça a cidade!”, denuncia: “Os filhos renegam os pais!” Dois generais acompanham o arcebispo até o aeroporto e na sala de espera uma mulher puxa a túnica do sacerdote: pede a bênção, padre, que as iguanas abandonem o telhado da minha casa e as dores meu corpo. Os fotógrafos dos jornais rodeiam o arcebispo, o arcebispo transpira, a mitra treme em sua cabeça.
Desta margem, vazia, ergo o olhar e vejo o avião, o arcebispo atravessa as nuvens e se perde no céu. Atrás de mim, no lago, junto com as infinitas torres de ferro, ardem as chamas de gás e as perfuradeiras continuam seu cabecear eterno, os cabos pendem dos bicos como baba de petróleo. Aqui o sol arde com fúria e arranca da terra uma nuvem de óleo e fumaça, cada vez mais espessa e mais difícil de atravessar. Neste deserto negro, brilhoso de petróleo, não cresce pasto nem cresce nada, não sobra nada: as solas das botas grudam no chão, mas as marcas de meus passos se apagam, comidas pelo petróleo, antes de fixarem sua impressão. Existem alguns cartazes rasgados, restos de letras que disseram: “Cuidado. Não passe. Cachorro bravo”, disseram: “É proibido jogar lixo”, disseram: “Terra Negra reclama do Prometido”.
Aqui, os pássaros não cantam: se queixam. Uns poucos patos flutuam, sem se mover, nos charcos pantanosos. Os corvos são a última coisa viva que restou para as palmeiras.
Já estou completando noventa e sete. Estou chegando ao fim, mas quero ver – não é? – se falo com o Senhor para conseguir mais um tempinho.
Como não vou lembrar de quando chegaram as companhias. Foi quando começou a correr dinheiro. O pessoal daqui ainda trabalhava na terra, naqueles anos, eu esqueço das datas, mas isto era muito bonito, os homens pescavam no lago, bebiam água do lago. Naquela época, havia capitães e doutores. Lá no lamaçal comíamos ovos de jacaré; matávamos o jacaré, salgávamos sua carne e fazíamos guisadinho de jacaré. Se éramos felizes? Ninguém é feliz. E quanto mais posição tenha o homem, pior. Mas todos tínhamos vida própria e havia muita união. Agora, a água está envenenada e vivemos encurralados entre o gretão e o dique. A gente nova não fica por aqui, não cria raízes. A garotada vai crescendo e indo embora.
Eu, ir embora, não vou. Eu nasci aqui, me criei aqui e aqui estou, sempre vendendo amendoim no estabelecimento “A Mão de Deus”, como você está vendo, que antes era um lugarzinho que vendia comida e onde o pessoal tinha seus bailinhos. Aqui eu fico. Minha filha foi embora, ela sim, e é bem saidinha minha filha, me escreveu um verso que diz: “É tanta a minha inteligência, que minhas improvisações nascem das regiões azuis do firmamento”. Ela está na capital. Por que não? Cada um vive da sua capacidade. E não me pergunte mais, porque as escolas de antes só ensinavam a contar até cem.
Não há nem ao menos porcos escavando o chão inchado de lixo. As moscas me acossam, bêbadas de calor, zunindo forte, as moscas batem contra minha cara, grudam em minha pele oleosa de suor. Gotas gordas de suor pendem de minhas pestanas. Me deixo guiar pelo olfato. Estas ruínas exalam um hálito de moribundo; os odores, cada vez mais azedos, vão anunciando, enjoativos, o lugar onde o primeiro jorro de petróleo brotou, há sessenta anos: o buraco. Parece que se passaram séculos desde que se escutou por aqui o rumor dos últimos passos de um homem, e agora só persistem os ruídos da demolição, o desmoronamento de todas as coisas, o rodar das pedras caindo, mas lento, lentíssimo, o moribundo está roncando e se escuta o cicio de dentes de ratos que serrilham as madeiras e o muro, a lepra que avança, lepra do tempo, o zumbido das moscas e o borboleteio do sol que cozinha o lixo e faz ferver os charcos de petróleo, o estalido das bolhas de petróleo inchando-se e arrebentando nestas marmitas, e ao redor dos charcos de sopa negra o chiar da terra que racha, em fendas abertas pelo calor, como rugas, ao longo e ao largo e até o osso da cara da terra.
O jorro brotara até as nuvens e o vento fez chover petróleo sobre a comarca. Caía petróleo sobre os tetos de folhas de palmeiras das casas e os lavradores e lenhadores e os caçadores se afogavam em petróleo, atônitos, com os olhos fora das órbitas, porque nunca tinham sabido que aquilo lhes fazia falta.
E veio gente do oriente, do sul e do centro. Os camponeses jogavam aos poços os laços e as foices e vinham pelo rio e através das selvas. Os de Coro foram trazidos para o monte, para devastar os bosques a golpes de facão e machado, e a serpente guayacán e a malária acabaram com eles; os da ilha Margarida arrebentavam os pulmões amarrando canos no fundo do lago.
Homens de todas as cores e de todos os idiomas brotavam do mar em navios negros, de proas de ferro. Apareceram as máquinas, de rodas dentadas e lâminas brilhantes, melhores que os homens para resistir às mordidas da serpente e às febres. As torres eram de madeira e depois foram de ferro e brotavam uma ao lado da outra. Também trouxeram automóveis, gramofones, mesas de pano verde e mulheres capazes de fazer o amor vinte e cinco horas por dia: elas se chamavam Chavefixa, Seteválvulas, Rompepregas, Tubulação. Depois da guerra, os bares abandonaram Tasajeras e foram para Alta Gracia, depois chamada Coréia, além de Lagunillas. Para lá se mudaram os bares enormes, e lá estão; parecem prisões ou fortalezas. Quando caiu a ditadura, surgiram no país revolvido as juntas pró-melhoras e as juntas pró-desenvolvimento, e uma equatoriana, que tinha sido dama de alto gabarito, organizou aqui uma greve de pernas fechadas. Se chamava Monosábia. Elas triunfaram.
Desprendeu-se, quebrou e se precipitou no vazio. Estes são os pedaços de uma única coisa, hoje arrebentada, mas que foi. (Havia existido entusiasmo, e luta, e vida viva.) Os restos: como um arrependimento: dentes de guindastes forrados de ferrugem, cadáveres de automóveis, latas de leite em pó Milk, óleo Diana, mata-baratas Efetan, suco de laranja Ella, montanhas de latas, farrapos de um vestido de festa pendurados num prego, cabines de camionetes sem camionetes, uma espuma de baba seca sobre madeirames verdolengos, luvas de trabalho que perderam os dedos, pneus para medir a pressão, sapatos afogados em barro, ossos de galinhas e cachorros, seringas, um cadillac reduzido a mofo, cascas de coco, fiapos de capas de chuva, um ônibus sem rodas nem paralamas afundado contra um arbusto e que agora forma parte desse arbusto com os tirantes do teto ao vento como vértebras ou galhos secos, elásticos de poltronas, garrafas com seus bicos em cacos, sucatas de guindastes e de perfuradeiras, monstros em papelão cinzento que antes foram caixas de Veuve Clicquot ou Ye Monks e agora têm mandíbulas e braços e estão encolhidos e à espreita, fios negros de cascas de banana, vegetação podre, peles de vacas sem vacas e acossadas por exércitos de moscas, taladros abandonados com suas bases de cimento como ruínas indígenas depois de um incêndio, com hordas de vermes surgindo debaixo de cada coisa, um letreiro de Cafenol, o camelo de Camel, a moldura de argamassa de um alto-relevo com três dedos de uma mão e a boca de uma cara, pilares de estuque, um muro desfeito de onde pendura-se uma língua de papel florido, um busto de manequim erguido sobre os escombros, alçando-se, deusas de gesso, sem braços nem pernas, com uma cara de despeito e os poucos cabelos ainda grudados no crânio: ela sorri.
É uma armadilha, penso. Não me movo. Estou rodeado de lixo pelo norte e pelo sul, o lixo me toma de assalto de leste a oeste. E o lixo que avança, não eu, ou talvez, seja esse fedor a fermento e tripas em decomposição que me encurralam e me vão traçando para asfixiar-me e eu penso que é uma cilada, o primeiro poço de petróleo não existiu nunca, nunca houve, nunca poderei sair daqui, não sei por onde vim e não há estrelas para me guiarem. Me deixo cair sob o sol em chamas e com a cabeça apertada entre o joelho rogo que caiam em cima de mim a noite ou a chuva.
Eduardo Galeano, in Vagamundo

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