Estou
tão feliz que nem rio. Deito-me com desleixo, bastando-me: eu e eu.
O regressar de meu marido mediu, até hoje, todas as minhas esperas.
O perdoar a meu homem foi medida do desespero. Durante tempos, só
tive piedade de mim. Hoje não, eu me desmesuro, pronta a crianceiras
e desatinos. Minha alegria, assim tanta, só pode ser errada.
Desculpe-me,
Cristo: esplendoroso é o que sucede, não o que se espera. E eu,
durante anos, tive vergonha da alegria. Estar-se contente, ainda vá.
Que isso é passageiro.
Mas
ser-se alegre é excessivo como pecado mortalício.
É
de noite e falta-me apenas um quase para estar sozinha no quarto. Ou,
no rigor: o quarto está sozinho comigo. Nesta mesma cama sonhei
tantas vezes que o meu amor vinha pela rua, eu escutava os seus
Passos, cheia de ânsia. E antes que ele chegasse, corria a fechar a
porta. Fosse esse gesto, o de trancar a fechadura, o meu fingido
valimento. Eu fechava a porta para que, depois, o simples abrir dos
olhos tivesse o brilho de um milagre.
Para
que ele, mais uma vez, casasse comigo. E o mundo se abrisse, casa,
cama e sonho.
Durante
anos, porém, os passos de meu marido ecoaram como a mais sombria
ameaça. Eu queria fechar a porta, mas era por pânico. Meu homem
chegava do bar, mais sequioso do que quando fora. Cumpria o fel de
seu querer: me vergastava com socos e chutos. No final, quem chorava
era ele para que eu sentisse pena de suas mágoas. Eu era culpada por
suas culpas. Com o tempo, já não me custavam as dores. Somos feitos
assim de espaçadas costelas, entremeados de vãos e entrâncias para
que o coração seja exposto e ferível.
Venâncio
estava na violência como quem não sai do seu idioma. Eu estava no
pranto como quem sustenta a sua própria raiz. Chorando sem direito a
soluço; rindo sem acesso a gargalhada. O cão se habitua a comer
sobras. Como eu me habituei a restos de vida.
A
semana passada foi quando o rasgão se deu. Venâncio ficou furioso
quando descobriu, em estilhaços, a emoldurada fotografia na nossa
sala. Era um retrato antigo, parecia estar ali mesmo antes de haver
parede. Nele figurava Venâncio, ainda magro e moço, posando na
nossa varanda. Pelo olhar se via que sempre fora dono e patrão.
Surjo atrás, desfocada, esquecida. Sem pertença nem presença.
Ao
ver a moldura quebrada e os vidros ainda espalhados pelo chão,
Venâncio me golpeou com inusitada força, pontapés cruzaram o
escuro do quarto entre gritos meus: – Na barriga não, na barriga
não!.
Depois,
quando ele amainou, interrompi-lhe o choro e me soaram serenas e
doces as palavras: – Vê o sangue, Venâncio? Eu estava grávida.
–
Grávida, você?! Com uma idade dessas!??
Arrumei vimas poucas roupas e fui, a pé, para o posto de socorro.
Era manhã, fazia chuva e caía o sol. Algures, por um aí, deveria
fantasiar um arco-íris. Mas eu estava cega para fantasias. Meu
filho, esse primeiro que haveria de nascer, estava morto dentro de
mim.
As
minhas mãos, ingênuas, ainda amparavam o ventre como se ele
continuasse lá, enroscado grão de futuro. No passeio público,
privadamente tombei. Antes que beijasse o chão já eu perdera as
luzes e deixara de sentir a chuva no meu corpo.
Desmaiada,
me espreitaram os dentros: gravidez não havia. Mais uma vez era
falsa esperança. Esse vazio de mim, essa poeira de fonte seca, o não
poder dar descendência a Venâncio, isso doía mais que perder um
filho. Eu estava mais estilhaçada que o retrato da sala.
Quando
despertei, me acreditei já morta, transferida para outro mundo.
Morrer não me bastava: nesse depois ainda Venâncio me castigaria.
Eu necessitava um outro jamais.
Adivinhei
as minhas fúnebres cerimônias. Venâncio e mais uns tantos, entre
vizinhos e parentes. Se o meu homem me chorasse, nessa ida, seria
para melhor me esquecer. A lágrima lava a sofrência. Os outros
chamariam a isso de amor, saudade. Mas não era a viuvez que
atormentaria Venâncio. Viúvo estava ele há muito. O que o podia
atormentar era a feiura desta minha Morte. Se de mim alguma vez se
recordasse, seria Para melhor me ausentar, mais desfocada que o
retrato da sala.
Venâncio
não foi visitar-me ao hospital. O que eu fizera, ao dirigir-me por
meu pé ao hospital, foi uma ofensa sem perdão. Até ali eu fechara
as minhas feridas no escuro íntimo do lar. Que é onde a mulher deve
cicatrizar. Mas, desta vez, eu ousara fazer de Cristo, exibir a cruz
e a chaga pelas vistas alheias.
Ao
regressar a casa, faço contas às dores. Por certo, Venâncio me
espera para me fazer pagar. Por isso, me demoro na varanda como se
esperasse um sinal para entrar. E ali permaneço, calada, como fazem
as mulheres que, de encontro ao tempo, rezam para nunca envelhecerem.
Quando
entro em casa, os estilhaços do retrato rebrilham no chão da sala.
O fotografado olhar de Venâncio pousa sobre mim, assegurando os seus
direitos de proprietário. Distraída, a minha mão recolhe um vidro.
Na cama de casal, meu marido está enroscado, em fundo sono. Deito-me
a seu lado e revejo a minha vida. Se errei, foi Deus que pecou em
mim. Eu semeei, sim, mas para decepar. Se recolhi os grãos, foi para
os deitar no moinho. Há quem chame isto de amor. Eu chamo a cruel
dança do tempo. Nessa dança, quem bate o tambor é a mão da morte.
Lição
que aprendi: a Vida é tão cheia de luz, que olhar é demasiado e
ver é pouco. É por isso que fecham os olhos aos mortos. E é o que
faço ao meu marido. Lhe fecho os olhos, agora que o seu sangue se
espalha, avermelhando os lençóis.
Mia
Couto, in O fio das missangas
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