Félix
Ventura estuda os jornais enquanto janta, folheia-os atentamente, e
se algum artigo lhe interessa assinala-o a tinta lilás com uma
caneta. Termina de comer e então recorta-o com cuidado e guarda-o
num arquivo. Numa das prateleiras da biblioteca há dezenas destes
arquivos. Numa outra dormem centenas de cassetes de vídeo. Félix
gosta de gravar noticiários, acontecimentos políticos importantes,
tudo o que lhe possa ser útil um dia. As cassetes estão ordenadas
por ordem alfabética, segundo o nome da personalidade ou do
acontecimento a que se referem. O jantar dele resume-se a uma tigela
de caldo verde, especialidade da Velha Esperança, a um chá de
menta, a uma grossa fatia de papaia, temperada com limão e uma gota
de vinho do porto. No quarto, antes de se deitar, veste o pijama com
tal formalidade que eu fico sempre à espera de o ver atar ao pescoço
uma gravata escura. Esta noite o estrídulo da campainha
interrompeu-lhe a sopa. Isso irritou-o. Dobrou o jornal, levantou-se
com esforço e foi abrir a porta. Vi entrar um homem alto, distinto,
nariz adunco, as maçãs do rosto salientes, bigode farto, curvo e
lustroso, como não se usa há mais de um século. Os olhos, pequenos
e brilhantes, pareciam apoderar-se de todas as coisas. Vestia um fato
azul, de corte antiquado, que no entanto lhe ficava bem, e segurava
na mão esquerda uma pasta em cabedal. A sala ficou mais escura. Foi
como se a noite, ou alguma coisa ainda mais enlutada do que a noite,
tivesse entrado juntamente com ele. Mostrou um cartão de visitas.
Leu alto:
– Félix
Ventura. Assegure aos seus filhos um passado melhor. – Riu-se. Um
riso triste, mas simpático: – É o senhor, presumo? Um amigo
deu-me este cartão.
Não
consegui pelo sotaque adivinhar-lhe a origem. O homem falava
docemente, com uma soma de pronúncias diversas, uma subtil aspereza
eslava, temperada pelo suave mel do português do Brasil. Félix
Ventura recuou:
– Quem
é você?
O
estrangeiro fechou a porta. Passeou pela sala, as mãos cruzadas
atrás das costas, detendo-se um largo momento em frente ao belo
retrato a óleo de Frederick Douglass. Finalmente sentou-se numa das
poltronas e com um gesto elegante convidou o albino a fazer o mesmo.
Parecia ser ele o dono da casa. Amigos comuns, disse, e a voz fez-se
ainda mais suave, tinham-lhe indicado aquele endereço. Haviam-lhe
falado num homem que traficava memórias, que vendia o passado,
secretamente, como outros contrabandeiam cocaína. Félix olhou-o
desconfiado. Tudo no estranho o irritava – os modos doces e ao
mesmo tempo autoritários, o discurso irônico, o bigode arcaico.
Sentou-se num majestoso cadeirão de verga, no extremo oposto da
sala, como se receasse ser contagiado pela delicadeza do outro.
– Posso
saber quem é você?
Também
dessa vez não obteve resposta. O estrangeiro pediu licença para
fumar. Tirou do bolso do casaco uma cigarreira de prata, abriu-a, e
enrolou um cigarro. Os seus olhos saltitavam de um lado para o outro,
numa atenção distraída, como uma galinha ciscando entre a poeira.
Deixou que o fumo se espalhasse e o cobrisse. Sorriu num inesperado
fulgor:
– Mas
diga-me, meu caro, quem são os seus clientes?
Félix
Ventura rendeu-se. Procurava-o, explicou, toda uma classe, a nova
burguesia. Eram empresários, ministros, fazendeiros, camanguistas,
generais, gente, enfim, com o futuro assegurado. Falta a essas
pessoas um bom passado, ancestrais ilustres, pergaminhos. Resumindo:
um nome que ressoe a nobreza e a cultura. Ele vende-lhes um passado
novo em folha. Traça-lhes a árvore genealógica. Dá-lhes as
fotografias dos avôs e bisavôs, cavalheiros de fina estampa,
senhoras do tempo antigo. Os empresários, os ministros, gostariam de
ter como tias aquelas senhoras, prosseguiu, apontando os retratos nas
paredes – velhas donas de panos, legítimas bessanganas –,
gostariam de ter um avô com o porte ilustre de um Machado de Assis,
de um Cruz e Sousa, de um Alexandre Dumas, e ele vende-lhes esse
sonho singelo.
–
Perfeito, perfeito. – O estrangeiro
alisou o bigode. Foi isso que me disseram. Eu preciso dos seus
serviços. Receio aliás que lhe vá dar bastante trabalho.
– O
trabalho liberta –, murmurou Félix. Disse-o talvez para provocar,
para testar a identidade do intruso, mas se era essa a intenção
falhou, pois este limitou-se a fazer com a cabeça um gesto de
assentimento. O albino levantou-se e desapareceu na direção da
cozinha. Voltou pouco depois segurando com ambas as mãos uma garrafa
de bom tinto português. Mostrou-a ao estrangeiro. Ofereceu-lhe uma
taça. Perguntou:
– Posso
saber o seu nome?
O
estrangeiro estudou o vinho contra a luz do candeeiro. Baixou as
pálpebras e bebeu devagar, atento, feliz, como quem segue o voo de
uma fuga de Bach. Poisou o copo numa pequena mesa, mesmo à sua
frente, um móvel em mogno, com tampo de vidro; finalmente
endireitou-se e respondeu:
– Tive
muitos nomes mas quero esquecê-los a todos. Prefiro que seja você a
baptizar-me.
Félix
insistiu. Precisava de saber, no mínimo, em que se ocupavam os seus
clientes. O estrangeiro ergueu a mão direita, uma mão larga, de
dedos compridos e ossudos, numa vaga recusa. Depois baixou-a e
suspirou:
– Tem
razão. Sou repórter fotográfico. Recolho imagens de guerras, da
fome e dos seus fantasmas, de desastres naturais, de grandes
desgraças. Pense em mim como uma testemunha.
Explicou
que pretendia fixar-se no país. Queria mais do que um passado
decente, do que uma família numerosa, tios e tias, primos e primas,
sobrinhos e sobrinhas, avós e avôs, inclusive duas ou três
bessanganas, embora já todos mortos, naturalmente, ou a viverem no
exílio, queria mais do que retratos e relatos. Precisava de um novo
nome, e de documentos nacionais, autênticos, que dessem testemunho
dessa identidade. O albino ouvia-o aterrado:
– Não!
–, conseguiu dizer. – Isso eu não faço. Fabrico sonhos, não
sou um falsário... Além disso, permita-me a franqueza, seria
difícil inventar para o senhor toda uma genealogia africana.
– Essa
agora! E por quê?!...
–
Bem... O cavalheiro é branco!
– E
então?! Você é mais branco do que eu!...
–
Branco, eu?! –, o albino engasgou-se.
Tirou um lenço do bolso e enxugou a testa: – Não, não! Sou
negro. Sou negro puro. Sou um autóctone. Não está a ver que sou
negro?...
Eu,
que permanecera o tempo todo no meu lugar habitual, junto à janela,
não consegui evitar uma gargalhada. O estrangeiro ergueu o rosto
como se farejasse o ar. Tenso, alerta:
– Ouviu
isto? Quem se riu?
–
Ninguém, respondeu o albino, e apontou
para mim: – Foi a osga.
O
homem levantou-se. Vi-o aproximar-se e senti que os olhos dele me
atravessavam. Era como se olhasse diretamente para a minha alma (a
minha velha alma). Abanou a cabeça num silêncio perplexo:
– Sabe
o que é isto?
–
Como?!
– É
uma osga, sim, mas de uma espécie muito rara. Está a ver estas
listras? Trata-se de uma osga-tigre, ou osga tigrada, um animal
tímido, ainda pouco estudado. Os primeiros exemplares foram
descobertos há meia dúzia de anos na Namíbia. Acredita-se que
possam viver duas décadas, talvez mais. O riso impressiona. Não lhe
parece um riso humano?
Félix
concordou. Sim, ao princípio também ele ficara perturbado. Depois
consultara alguns livros sobre répteis, encontrara-os ali mesmo, em
casa, tinha livros sobre tudo, milhares deles, herdara-os do pai
adotivo, um alfarrabista que trocara Luanda por Lisboa poucos meses
após a independência, e descobrira que certas espécies de osgas
podem produzir sons fortes, semelhantes a gargalhadas. Ficaram um bom
tempo discutindo sobre mim, o que me incomodou, porque o faziam como
se eu não estivesse presente. Ao mesmo tempo sentia que falavam não
de mim, mas de um ser alienígena, de uma vaga e remota anomalia
biológica. Os homens ignoram quase tudo sobre os pequenos seres com
os quais partilham o lar. Ratos, morcegos, baratas, formigas, ácaros,
pulgas, moscas, mosquitos, aranhas, minhocas, traças, térmitas,
percevejos, bichos-do-arroz, caracóis, escaravelhos. Decidi que o
melhor seria fazer-me à vida. Àquela hora o quarto do albino
enche-se de mosquitos e eu começava a sentir fome. O estrangeiro
levantou-se, foi até à cadeira onde poisara a pasta, abriu-a e
tirou lá de dentro um envelope grosso. Entregou-o a Félix,
despediu-se dele e avançou para a porta. Ele próprio a abriu.
Acenou com a cabeça e desapareceu.
José
Eduardo Agualusa, in O vendedor de passados
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