O caso do Floyd
Tom
olhou-o afastar-se e depois a voz de sua mãe chamou-lhe a atenção.
Ela estava entornando café nas xícaras, e não olhava o filho.
— Tommy
— disse, hesitante e tímida.
— Sim?
— a timidez da mãe contagiou-o, deixando-o embaraçado. Ambos
sabiam daquela timidez mútua, o que a tornava ainda maior.
— Tommy
— falou ela —, eu tenho que te perguntar: cê não tá com ódio,
está?
— Com
ódio de que, mãe?
— Cê
não ficou um revoltado? Não fizeram nada contigo lá na prisão,
pra ocê ficar com ódio das pessoas?
Tom
olhou-a de esguelha, estudou-lhe as feições por um instante, e seus
olhos pareciam perguntar onde ela aprendera coisas assim.
— Nããão
— disse. — Tive lá só pouco tempo. E eu não sou orgulhoso que
nem certos camaradas. Deixo as coisas passar. Mas o que foi, mãe?
Agora
ela estava olhando o filho, boquiaberta, como que para ouvir melhor,
seus olhos cavando fundo para melhor saber. Esperava descobrir a
resposta que a língua sempre oculta. Falou, confusa:
— Eu
conheci aquele rapaz, o Floyd. Conheci também a mãe dele. Eram boa
gente. Naturalmente, o rapaz era levado, como todos são.
Ela
fez uma pausa e depois suas palavras escoaram com mais fluência:
— Não
sei bem como aconteceu tudo, mas foi mais ou menos assim: o rapaz fez
uma ruindade qualquer, e então eles deram nele e botaram ele na
cadeia; bateram tanto nele que ficou louco de raiva e nesse estado de
espírito ele fez outra coisa ruim e aí deram nele outra vez. Não
demorou, tava que ninguém podia com ele. Atiraram nele que nem um
cachorro e ele também atirou. Então, caçaram ele como se caça um
coiote e ele mordia e rosnava como um lobo. Ficou doido. Não era
mais um homem, era um animal perigoso. Mas os que conheciam ele não
lhe faziam mal nenhum. Pra eles, o rapaz não era mau. Afinal, ele
foi pegado e mataram ele. Os jornais disseram que ele não prestava,
e foi assim que as coisas aconteceram. — Ela parou de falar e
molhou com a língua os lábios secos e todo o seu rosto era um
doloroso ponto de interrogação. — Eu tenho que saber, Tommy —
disse. — Eles deram em você também? Cê ficou mau também?
Tom
apertou os lábios e olhou para baixo, para as mãos enormes e
calosas.
— Não
— disse. — Eu não sou assim. — Ele estacou e ficou olhando as
unhas curtas e partidas. — O tempo que tive na cadeia andei sempre
direito. Eu não tenho raiva de ninguém.
—
Graças a Deus! — suspirou, aliviada.
Tom
ergueu a cabeça, rapidamente.
— Mãe
— disse —, eu vi o que eles fizeram com a nossa casa... Ela se
aproximou do filho e disse com inflexão apaixonada:
—
Tommy, não vai lutar contra eles
sozinho. Eles vão te caçar que nem a um coelho. O que eu tenho
pensado e ruminado! Me disseram que são mais de cem mil pessoas que
eles expulsaram desta terra. Tommy, se todos juntos tivessem lutado,
eles não iam expulsar ninguém. Mas, sozinho não adianta...
Tommy,
olhando-a, foi gradualmente baixando as pálpebras até que apenas um
lampejo era visível entre elas.
— Muita
gente pensa desse modo? — perguntou.
— Não
sei. Eles tão tudo atordoado. Andam por aí como se tivessem meio
dormindo.
De
fora, aproximando-se pelo terreiro, vinha uma voz chiante, aguda, de
anciã:
— Com
Deus, pela vitória!... Com Deus, pela vitória!
Tom
voltou a cabeça em direção à voz e fez um trejeito.
— Eles
souberam afinal que tô em casa. Mãe — disse —, ocê não era
assim antes.
O
rosto da velha endureceu e seus olhos tornaram-se gélidos.
— É
porque ninguém antes tentou derrubar a minha casa. É porque a minha
gente nunca foi posta na estrada desse jeito. Nunca tive que vender
nada o que era meu, nosso... Aí vêm eles. — E caminhou até o
fogão e colocou o grande tabuleiro de pão em dois pratos de
estanho. Entornou depois farinha na frigideira cheia de gordura
fervente, e suas mãos ficaram brancas da farinha. Por um instante,
Tom ficou a olhá-la, e logo foi à porta.
John
Steinbeck, in As vinhas da ira
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