sexta-feira, 4 de novembro de 2016

O caso do Floyd

Tom olhou-o afastar-se e depois a voz de sua mãe chamou-lhe a atenção. Ela estava entornando café nas xícaras, e não olhava o filho.
Tommy — disse, hesitante e tímida.
Sim? — a timidez da mãe contagiou-o, deixando-o embaraçado. Ambos sabiam daquela timidez mútua, o que a tornava ainda maior.
Tommy — falou ela —, eu tenho que te perguntar: cê não tá com ódio, está?
Com ódio de que, mãe?
Cê não ficou um revoltado? Não fizeram nada contigo lá na prisão, pra ocê ficar com ódio das pessoas?
Tom olhou-a de esguelha, estudou-lhe as feições por um instante, e seus olhos pareciam perguntar onde ela aprendera coisas assim.
Nããão — disse. — Tive lá só pouco tempo. E eu não sou orgulhoso que nem certos camaradas. Deixo as coisas passar. Mas o que foi, mãe?
Agora ela estava olhando o filho, boquiaberta, como que para ouvir melhor, seus olhos cavando fundo para melhor saber. Esperava descobrir a resposta que a língua sempre oculta. Falou, confusa:
Eu conheci aquele rapaz, o Floyd. Conheci também a mãe dele. Eram boa gente. Naturalmente, o rapaz era levado, como todos são.
Ela fez uma pausa e depois suas palavras escoaram com mais fluência:
Não sei bem como aconteceu tudo, mas foi mais ou menos assim: o rapaz fez uma ruindade qualquer, e então eles deram nele e botaram ele na cadeia; bateram tanto nele que ficou louco de raiva e nesse estado de espírito ele fez outra coisa ruim e aí deram nele outra vez. Não demorou, tava que ninguém podia com ele. Atiraram nele que nem um cachorro e ele também atirou. Então, caçaram ele como se caça um coiote e ele mordia e rosnava como um lobo. Ficou doido. Não era mais um homem, era um animal perigoso. Mas os que conheciam ele não lhe faziam mal nenhum. Pra eles, o rapaz não era mau. Afinal, ele foi pegado e mataram ele. Os jornais disseram que ele não prestava, e foi assim que as coisas aconteceram. — Ela parou de falar e molhou com a língua os lábios secos e todo o seu rosto era um doloroso ponto de interrogação. — Eu tenho que saber, Tommy — disse. — Eles deram em você também? Cê ficou mau também?
Tom apertou os lábios e olhou para baixo, para as mãos enormes e calosas.
Não — disse. — Eu não sou assim. — Ele estacou e ficou olhando as unhas curtas e partidas. — O tempo que tive na cadeia andei sempre direito. Eu não tenho raiva de ninguém.
Graças a Deus! — suspirou, aliviada.
Tom ergueu a cabeça, rapidamente.
Mãe — disse —, eu vi o que eles fizeram com a nossa casa... Ela se aproximou do filho e disse com inflexão apaixonada:
Tommy, não vai lutar contra eles sozinho. Eles vão te caçar que nem a um coelho. O que eu tenho pensado e ruminado! Me disseram que são mais de cem mil pessoas que eles expulsaram desta terra. Tommy, se todos juntos tivessem lutado, eles não iam expulsar ninguém. Mas, sozinho não adianta...
Tommy, olhando-a, foi gradualmente baixando as pálpebras até que apenas um lampejo era visível entre elas.
Muita gente pensa desse modo? — perguntou.
Não sei. Eles tão tudo atordoado. Andam por aí como se tivessem meio dormindo.
De fora, aproximando-se pelo terreiro, vinha uma voz chiante, aguda, de anciã:
Com Deus, pela vitória!... Com Deus, pela vitória!
Tom voltou a cabeça em direção à voz e fez um trejeito.
Eles souberam afinal que tô em casa. Mãe — disse —, ocê não era assim antes.
O rosto da velha endureceu e seus olhos tornaram-se gélidos.
É porque ninguém antes tentou derrubar a minha casa. É porque a minha gente nunca foi posta na estrada desse jeito. Nunca tive que vender nada o que era meu, nosso... Aí vêm eles. — E caminhou até o fogão e colocou o grande tabuleiro de pão em dois pratos de estanho. Entornou depois farinha na frigideira cheia de gordura fervente, e suas mãos ficaram brancas da farinha. Por um instante, Tom ficou a olhá-la, e logo foi à porta.
John Steinbeck, in As vinhas da ira

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