segunda-feira, 7 de novembro de 2016

Luas-de-mel

No mais, mesmo, da mesmice, sempre vem a novidade. Naquela véspera, eu andava meio relaxo, fraco; eu já declinava para nãoezas? Nos primeiros de novembro. Sou quase de paz, o quanto posso. Desconto, para trás, o em que me tive, da mocidade: desmandos, desordens e despraças. Daí, depois, da vida a sério, que, cá, de brava, danava-se. Sou remediado lavrador, isto é — de pobre não me sujo, de rico não me esporcalho. Defesa e acautelamento é que não falecem, nesta fazenda Santa-Cruz-da-Onça, de hospitalidades; minha. Aqui é um recanto. Por moleza do calor era que eu ficava a observar. Nesse dia, nada vezes nada. De enfastiado e sem-graça, é que eu comia demais. Do almoço, empós, me remitia, em rede, em quarto. Questão de idade, digestões e saúde: fígado. Sa-Maria Andreza, minha santa e meio passada mulher, ia ferver um chá, já, para o meu empacho. Bom. Seo Fifino, meu filho, banda de fora da porta, noticiou: que tendo chegado certo sujeito, um positivo, com carta. Tomei pausa. Prestezas e pressas não me agravavam.
Seo Fifino, filho meu, lorpa nem sonsado não sendo, me explicando ele estava: que esse-um aportara tão em socapa, que só se notou quando já estacado, a cavalo, atrás do engenho, nem os cachorros tendo latido, nem feito ele ranger porteira; e que com armas, todo provido, repetição a tiracolo. E, aí, meu capataz, José Satisfeito, soprado informava o nome dele, o qual — o “Baldualdo”. Sou mosquitinho em queixo de onça: não fiz celhas, não dei pasmo. Sabia da fama desse Baldualdo — que valendo um batalhão, com grande e morta freguesia. Por ora, que bem me importava? Donde digo: o meu José Satisfeito, próprio, sido já também um “Zé Sipío”, mão no amarelo; para que se me entenda. Nas eras dos tiroteios contra o Major Lidelfonso e seus soldados. Comigo. Eu com ele, e outros. Só a vida é que tem dessas rústicas variedades. Eu ponho a mesa e pago a despesa. Me mexi da rede, vim ver quem. Aquele homem, que chegado. Me olhou, prestes, medido o respeito, reperguntou meu nome por inteiro. A carta, que ele trazia, para me em mãos, era de vera e alta mensagem. Reli, as três e três vezes, o nome que essa assinava: Seo Seotaziano.
E — quero-me com esta! É o que soletreio: “Estimado meu amigo e compadre...” Seo Seotaziano, de sua sede distante, os fatos de marca manobrando, com estopim curto e o comprido braço. O chefe demais, homem de grande esfera, tigroso leão feito o canguçu, mas justo e pão de bom, em nobrezas e formato. Meu compadre-mor, mandador, dês que quando. E há que tempos isso fora. Mas, agora, se lembrava deste, aqui, neste ponto, confioso de lealdade. E com caso. Para despautas: o que decerto havia de haver — cachorro, gato e espalhafato. Mas, tenho de segundar, e quero. Se ele riscou, eu talho. Só os resumos, declarados: “Para um moço e uma moça, lhe peço forte resguardo. O mais se verá, mais tarde.” Essas doidices de amor! — sorri. Saí dos suspensos para os preparos.
No quieto, do que se precisava. Temperar o vir de outras coisas, acomodar os hóspedes, que esperados. Pondo ordens, consoante. Prevenido para valer por quatro. Aquele dia era de sábado. Sobreentendi, com o José Satisfeito, e com o Seo Fifino, meu filho: vai, que, do retiro do Meio, me trouxessem: certos homens; e, dois tantos desses, do Munho, das roças; sempre ainda restassem outros, no hoje por hoje, para o trabalho. Aqueles, porém, aqui à mão; pois, que: a horas competentes, homens de possibilidades. Tendo-se arroz e feijão à-bastança, e cargas de pólvora, chumbo e bala. Sensato, se me se diz. Só em paz, com Deus, sossegado. Sensato, sincero e honrado.
Sa-Maria Andreza, minha mulher, me mirava.
Aquele Baldualdo, decente: — “Se lhe respraz, meu senhor, por uns dias, aqui, paro...” — só me disse, baixo, sabendo de cor seu mister. Ele já meu companheiro sendo — por artes dos anjos-da-guarda. Na varanda, caminhei, uns passos, exercitados. Os que por vir, moço e moça? Sa-Maria Andreza, minha correta mulher, os um ou dois quartos arrumasse — toalhas, bem-estar, flores em vasos. Seguro que de noite chegavam, sagazes. — “Ah, minha velha, vamos tocar rabecas...” — gracejei, limpando a parabélum. Sa-Maria Andreza, boa companheira, só disse, abanando os topes: — “Aroeira de mato virgem não alisa...” Peguei na mão dela, meio afetuoso. Repensei em todas as minhas armas. Ai, ai, a longe mocidade.
Sem ninguém de nós desprevenidos, de fato em meia-noite chegaram. Noivos, amor muito. Ela, era das lindas, suspendendo as atenções; nem eu soube filha de que pai. Só meio assombradazinha, sorrisos desabafados. O moço — rapaz! — dos bons. Vi, com olho imediato. Tinha um rifle longo. Tinha o garbo guapo. Não, inda não eram casal. Cearam. Nada falaram. A moça se recolheu em camarinha, no intemerato da casa; de donzela, com recato. O moço, esse, valeroso, quis se arranchar na casa-do-engenho. Moço esporte de forte. Apreciei. Pude me dar foros de seu pai. Ah, eles tinham viajado vindo sozinhos, como se deve-de, em fugas particulares. Gostei, mais. Após, hora menos hora, foi que outro cabra chegou, que, a eles dois, em boa distância, afiançara proteção, sem eles saberem — a mando também de Seo Seotaziano.
As coisas bem feitas, medidas, como só um grão-capitão concebe. Esse outro se chamava o Bibião, era um brabo de cronha e cano: me tomou a benção. Bom. Tudo em tudo, em ordem, adormeci, consoante, proprietário de meu sono. Como não? Gente minha já galopava, nessa noite e madrugada. Um próprio à Fazenda Congonha, do meu compadre Veríssimo, por três rifles, três homens, emprestados. Pelo seguro. Povo de lá é de brasas. E um à Lagoa-dos-Cavalos, por outros três — para o meu compadre Serejério não se dar de melindrado. Bom. Eu tiro os outros por mim. Com tino e consideração, é que o respeito é granjeado: com honra, sossego e proveito. De encaminhar, me adormeci bem. Só vivo no supracitado.
Amanheci antes do sol, tudo em paz, posses e orvalhos. Admiro essas certezas, do campo, em cheiros, enfeitado; enquanto nada. Sa-Maria Andreza, minha mulher, me cuidava. A ela eu disse: — “Não me conste quem é esta moça, nem o que tenha revelado.” Não no por ora. Eu não queria saber, que senão pelo precatar: podendo ser filha de conhecido, parente meu ou amigo. Nem adiantava. Nessa hora, sendo fiel, eu era Seo Seotaziano. Nem pelo menos. Herói é no que dói! — bom ditado. Aquele dia, de domingo. Almoçou-se, com-fome-mente, apesardes. A Moça e o Moço, mesmo ante mim, ditosos se contemplavam. Tanta coisa neste mundo, bem feita. Sa-Maria Andreza, minha conservada mulher, em cozinhar se esmerava. Se me se diz, nem pensei: os namoros dessas gentes, são minhas outras mocidades.
A gente se mexendo, tranquilos, o tempo crescendo, parado. Do jeito, passou-se esse dia, em ouros e copas; enquanto nada. A linda Moça, lá dentro, no oratório rezava. Sa-Maria Andreza, mulher, sinceros carinhos lhe dava. Nós, cá fora. Seo Fifino meu filho desta banda, o Bibião na parte do morro, na ponte do córrego o Baldualdo; com outros e outros homens; mas, de esconso, tão em sutilmentes, que não se avistavam nem notavam. Comigo, juntos, o José Satisfeito, e o Moço noivo, de poucas palavras: andávamos da cava para o valo. Sa-Maria Andreza, minha, por mim também rezasse? Eu — exagerado. Provia, não meditava. Dia e tanto. Deus louvado. Então, veio o anoitecer, as estrelas, às esperadas. Aí, uns pós outros, chegavam, de surtos, os da Fazenda Congonha, e os da Lagoa-dos-Cavalos. Esses, não riam, em armas. Ah, as boas amizades.
Assim mais gente, outra vez, acordou-se antes dos galos. Ali, para a incerta segunda-feira — meio redonda. Dia dos fortes chegares. Primeiro, mais uns dois homens, que Seo Seotaziano enviava. Chefe bravo. Daí, conforme dado aviso, ainda outros, um par de cavaleiros: o sacristão atrás do padre. Ave. O padre, moço, espingarda às costas? Armado de ponto em branco; rifle curto. Se apeou, tudo abençoou, aprestado para o casamentício, que se ia ter: bodas em casa. Tive de fazer ação de me aprontar, botei minha roupa melhor — pelos momentos. Sa-Maria Andreza, minha mulher, com gosto dispôs o altar. Moço e Moça impavam. Amor é só amor. Airosos. Iam os dois, braço pelo braço. Vejam como são as paixões! Tudo bom, bem bom. Minha Sa-Maria Andreza bem vestida, figuro também que até corada. Sou homem para bandas-de-músicas. O padre disse belas palavras. A essa altura eu já soubesse: a noiva, de que família. Filha do Major João Dioclécio, duro e rico, forte em fato. Essas coisas são friezas... Bom. Dei de ombros. Fecho um campo, e nele eu sopro: destorcidas claridades. Terminada a casação, se saiu do altar para a mesa, passou-se de sala para sala.
Aí, foi o simples banquete, que com tudo e leitão e peru, farofas, pelo costume geral; vinhos. Comeu-se, nós todos e o padre; eu sem fastio nem empachado. Os doces. Cantou-se um coreto. O noivo, de armas na cinta. A noiva uma formosura, conforme com véu e grinalda. A velhice da lã é a sujeira... — eu pensei, consoante, me vendo. Essas delícias de amor! — suspirei, mal em pensando. Eu descia dos vales para os montes. E, inda havendo a cerimônia, meu irmão João Norberto chegando, de longe, de sua fazenda As-Arapongas. Sabida lá a notícia, para me ajudar ele chegava. Trazia maior novidade: — “Se o Major atacasse com jagunços, Seo Seotaziano vinha descer em cena — à frente de cem de seus homens: dar a retaguarda!” De glórias, assoviei, sentado. Aquele Moço noivo, gentil, era parente de Seo Seotaziano. Uns de meus cabras tocavam violas. Se dançava?
Olhei minha sadia Sa-Maria Andreza — contemplada.
E essa noite, das maiores! Vieram meus compadres Serejério e Veríssimo, em pessoas. Troço de gente, para levar ao cabo empresas dificultosas. Até o padre disse que ficava: para confessar a quem ou quem, na hora. Só que, na mesa, o livro de rezas, mas, a pistola, do lado. Bom padre, muito virtuoso, amigo de Seo Seotaziano. Agora, a gente esperava o Major Dioclécio e sua jagunçada. — “Ora, tão certo!” — se dizia. — “Essas coisas, quero ver é de noite!” — outro. Outro: — “E quem é que apaga a vela?” Aí, por toda a parte, se me se diz, patrulhas, trincheiras, sentinelas. Passos calados, suaves, tinidos de carabinas. Ah, esta velha fazenda Santa-Cruz-da-Onça, com espinhos para qualquer beiço e goela. Ponto é que, eu, era o chefe. Eu já estava meio sanguinolento: meio arvoado. Eu, com nudezas. Eu — em nome meu e de Seo Seotaziano.
A gente tendo de saroar. Na sala. Nestes bancos e cadeiras. Aqueles lampiões e lamparinas. Todos, os de mando. Que eu, meu irmão João Norberto, compadres Veríssimo e Serejério, e o Noivo, mais Seo Fifino. Também a Noiva, em seu vestido branco, e Sa-Maria Andreza, mulher minha. Todos e todas. A furupa de homens bons. Que, perto de mim, meu Zé Sipío. E a ceia — o enterro-dos-ossos — com alegria. Homem comendo em pé, o prato na mão; alerta o ouvido. A gente, risonhos de guerra, a qualquer conta. Aqui, o inimigo que viesse! — esses Dioclécios, dianhos. A hora — de fechar os fôlegos. Aqui, a gente esperava — com luz para mil mariposas. E: manda o tri-o-li-olá... — se me se diz — pique-será! Ninguém viesse? Ao ao-que-é-que-é, estávamos.
A gente, a um passo da morte, valentes, juntos, tantos, bastantes. Ninguém vinha. A Noiva sorria para o Noivo, em fofos; essas núpcias. E eu com a mente erradamente, de quem se acha em estado de armado. Com o que outro míngua, eu me sobejo. Minha Sa-Maria Andreza, mulher, me sorria. O que os velhos não podem mais ter: segredinhos, segredados. Ninguém vinha. Madrugar, e galos cantavam. O padre rezou, guerreiro, em destemido prazer das armas. Senti o remerecer, como era de primeiro, nesse venturoso dia. Recebi mais natureza — fonte seca brota de novo — o rebroto, rebrotado. Sa-Maria minha Andreza me mirou com um amor, ela estava bela, remoçada. Nessa noite ninguém vinha? Enquanto nada! Madrugada. O Noivo se retirou, com a Noiva; e mais uns, que com mais sono, já estando soprando nas palhas. Resolvemos revezar vigias. Eu, feliz, olhei minha Sa-Maria Andreza; fogo de amor, verbigrácia. Mão na mão, eu lhe dizendo — na outra o rifle empunhado — : — “Vamos dormir abraçados...” As coisas que estão para a aurora, são antes à noite confiadas. Bom. Adormecemos.
Amanheci fora de horas, me nascendo dos conchegos. A postos, todos. Aquele dia, a terça-feira. Era o dia? A gente esperava. Meio cuidosos, meio alegres; sérios, sem algazarra. Com que então? Nessas calmas esticadas. E, pois.
E, vai, senão, que, surgiu a nova: um recado. O camarada, vindo com ele, era um serviçal dos Dioclécios: que, hoje, sozinho, nesta data, um patrão vinha me visitar, de passagem. Amistoso. E, vira-me esta?! E — com quê? Me reuni, mais os chefes companheiros, para comparar as ideias, consoante. A gente chegou à razão: que eles, mais o grosso dos homens e rifles, deviam sair, por um espaço — esperar as coisas no retiro do Meio, daí a meia-légua e nada. Meu irmão João, meus dois compadres, mais o sacristão atrás do padre. Deixar, provisório, sem povo em armas, a minha casa-de-fazenda. Assim, assim, então. Bom. Para não fazer acintes, do que muito me refreio. Pois o homem não vinha sozinho, embaixador, só para a mim me dizer hem-hem? Ameaçar, se queixar, assustar, declarar guerras? Vá o que pois for. Minha porta é para o nascente. Não vejo outra banda. Sou um homem muito leal. Sou o que sou — eu — Joaquim Norberto. Sou o amigo de Seo Seotaziano.
Aqui recebi o homem, nesta porta do que é meu. E ele era um irmão da Noiva. Conhecido meu, cordial, com o bom aperto-de-mão. Entrou-se. Sentou-se. Severo, sereno, eu estava; sensato, ele, com desempeno. Não vinha embater escândalos, nem produzir inglesias; parecia portar-se em termos. Se à boa mente se conduzisse o negócio? Meu dever e gosto sendo reconciliar, recatar e recompor, como homem-de-bem e chefe-em-armas. Agora, era a desenrolação, do de cá e de lá, de ambas as partes. Me clareei. Convidei o homem para almoçar. E, aí, defini: com meios-modos e trastejos, não se bota e nem se saca. Chamei os Noivos, para a mesa!
Gente tesa — um par de toda a coragem. Vieram. O homem sorriu, meu visitante. Deu a mão a ela e a ele, disse: — “Com’passou? Com’passou?” — em leal estima e franquia. Bom. Comeu-se e conversou-se em diversas matérias. Bom. Aquilo, ao correr do cabelo. Suavemente, com incompletas, ele convidou os dois, para irem com ele: para a benção dos pais e uma festa, que se dava, de tornaboda. Tudo não estava certo e aprovado? Sabendo ele do casamento. Me convidou também, eu mais Sa-Maria querida Andreza. Bom, consoante. Eu, convenientemente, não podendo, pelos fatos. Mas mandei meu filho Seo Fifino, representante; e ele quis, por amor da festa, decidido.
Porque os Noivos aceitaram de ir, satisfatórios, me agradecendo se despediram. E eu, respondendo pelo direito: — “Só emendo: abaixo de Deus, só o Seo Seotaziano!” — disse. O homem, ficado em pé, para sair. E, a ele, direto, pelo seguro, na regra do bem-viver: — “Sou o padrinho deles dois, no casório, e vou ser o padrinho do primeiro filho deles, se lhes respraz!” — trovejei que disse, fingindo franco riso. Sempre era bom. E ele não ia me entender? Pouquinha dúvida. Esta vida tem de ser declarada e assinada. O mais, no mais, senão as carabinas!
Da varanda, Sa-Maria Andreza, e eu, nós, a gente contemplava: os cavaleiros, na congracez, em boa ida. Tudo tão terminado, de repente, se me se diz, tudo quitado. Nem guerra, nem mais lua-de-méis, regalo não regalado!
Olhei minha Sa-Maria Andreza, que me olhava. Ai-de. Enquanto nada.
Lá se foram o Baldualdo e o Bibião, também, consoantes. Seo Seotaziano estando servido, e meus deveres concordados. Meu capataz, o José Satisfeito, meio mole fechava a porteira. Aquelas luas-de-mel, tão poucas, assim em assopro de gaita. As passageiras consolações: fazer-de-conta-de-amor, o que era o meu cestinho de carregar água. A gente, agora: sair das desilusões, o entrar em idade. Mas, Seo Fifino, meu filho, um dia devia de roubar uma moça assim — em armas! Sorri, eu, Joaquim Norberto, respeitante. Abracei minha Sa-Maria Andreza, a gente com os olhos desnublados. Se me se diz? E então. Aqui nesta fazenda Santa-Cruz-da-Onça; aqui é um recato. Ah, bom; e semelhante fato foi.
Guimarães Rosa, in Primeiras estórias

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