terça-feira, 22 de novembro de 2016

Dom Quixote

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Dom Quixote, de Cândido Portinari 

I
que trata da condição do famoso e valente fidalgo dom quixote de la mancha e de como a exercita

Numa aldeia da Mancha, de cujo nome não quero me lembrar, não faz muito tempo vivia um fidalgo desses de lança no cabide, adarga antiga, pangaré magro e galgo corredor. Um cozido com mais carne de vaca que de carneiro, salpicão na maioria das noites, ovos fritos com torresmo aos sábados, lentilhas às sextas, algum pombinho de quebra aos domingos, consumiam três partes de sua renda. O resto dela gastava com um saio de lã cardada, calções de veludo para as festas e chinelos do mesmo tecido, e nos dias de semana se honrava com a melhor das burelinas. Tinha em casa uma criada que passava dos quarenta, uma sobrinha que não chegava aos vinte e um rapaz pau para toda obra, que tanto encilhava o pangaré como empunhava o podão. Nosso fidalgo beirava os cinquenta anos. Era de compleição rija, seco de carnes, rosto enxuto, grande madrugador e amigo da caça. Dizem que tinha por sobrenome Queixada, ou Queijada, que nisso há desacordo entre os autores que escrevem sobre o caso, embora por conjecturas verossímeis se entenda que se chamava Quixana. Mas isso pouco importa para nossa história: basta que em sua narração não se saia um ponto da verdade.
Deve-se saber, então, que o aludido fidalgo, nos momentos em que estava ocioso — que constituíam a maior parte do ano —, deu para ler livros de cavalaria com tanta paixão e prazer que esqueceu quase por completo o exercício da caça, e até mesmo a administração de seus bens; e a tanto chegaram sua curiosidade e desatino que vendeu muitos pedaços de terra de plantio para comprar livros de cavalaria, levando assim para casa quantos havia deles; e, entre todos, nada lhe parecia melhor que os escritos pelo famoso Feliciano de Silva, 1 porque a clareza de sua prosa e aqueles raciocínios intrincados lhe pareciam pérolas, principalmente quando lia os galanteios e as cartas de desafios, onde em muitas partes achava escrito: “A razão da sem-razão que a minha razão se faz, de tal maneira debilita minha razão, que com razão me queixo de vossa formosura”. E também quando lia: “Os altos céus que de vossa divindade divinamente com as estrelas vos fortificam e vos fazem merecedora do merecimento que merece vossa grandeza”.
Com essas palavras o pobre cavaleiro perdia o juízo e desvelava-se por entendê-las e arrancar-lhes o sentido, que nem o próprio Aristóteles o conseguiria nem as entenderia, se ressuscitasse apenas para isso. Não ficava muito convencido com os ferimentos de dom Belianis, porque imaginava que, por grandes que fossem os cirurgiões que o tivessem curado, não deixaria de ter o rosto e o corpo cheios de marcas e cicatrizes. Mas louvava no autor o fato de concluir o livro com a promessa de acabar aquela interminável aventura, ainda que muitas vezes tivesse vontade de tomar da pena e ele mesmo lhe dar fim ao pé da letra, como ali se assegura; e sem dúvida alguma o faria, e até o publicaria, se pensamentos maiores e contínuos não o estorvassem. Muitas vezes teve discussões com o padre do lugar — que era homem culto, formado em Sigüenza — sobre quem tinha sido melhor cavaleiro: Palmeirim da Inglaterra ou Amadis de Gaula; mas mestre Nicolás, barbeiro do mesmo povoado, dizia que nenhum emparelhava com o Cavaleiro do Febo e que se algum podia ser comparado a ele era dom Galaor, irmão de Amadis de Gaula, porque tinha as melhores condições para tudo e não era cavaleiro melindroso nem tão choramingas como seu irmão, e que em matéria de valentia não ficava atrás dele.
Enfim, ele se embrenhou tanto na leitura que passava as noites lendo até clarear e os dias até escurecer; e assim, por dormir pouco e ler muito, secou-lhe o cérebro de maneira que veio a perder o juízo. Sua imaginação se encheu de tudo aquilo que lia nos livros, tanto de encantamentos como de duelos, batalhas, desafios, feridas, galanteios, amores, tempestades e disparates impossíveis; e se assentou de tal modo em sua mente que todo aquele amontoado de invenções fantasiosas parecia verdadeiro: para ele não havia outra história mais certa no mundo. Dizia que Cid Ruy Díaz tinha sido muito bom cavaleiro, mas que não se igualava ao Cavaleiro da Espada Ardente, que de um só golpe tinha partido ao meio dois gigantes ferozes e descomunais. Sentia-se melhor com Bernardo del Carpio porque em Roncesvalles matara Roland, o Encantado, valendo-se da artimanha de Hércules, quando sufocou Anteu, o filho da Terra, entre os braços, e falava muito bem do gigante Morgante porque, apesar de ser daquela linhagem gigantesca de soberbos e descomedidos, era afável e bem-educado. Mas, acima de todos, admirava Reinaldos de Montalbán, principalmente quando o via sair de seu castelo e roubar todos com quem topava e quando, além-mar, carregou aquele ídolo de Maomé que era todo de ouro, conforme conta sua história. Para dar uns bons pontapés no traidor Ganelon, daria a criada que tinha e até sua sobrinha de quebra.
Enfim, acabado seu juízo, foi dar no mais estranho pensamento em que jamais caiu louco algum: pareceu-lhe conveniente e necessário, tanto para o engrandecimento de sua honra como para o proveito de sua pátria, se fazer cavaleiro andante e ir pelo mundo com suas armas e cavalo em busca de aventuras e para se exercitar em tudo aquilo que havia lido que os cavaleiros andantes se exercitavam, desfazendo todo tipo de afrontas e se pondo em situações e perigos pelos quais, superando-os, ganhasse nome eterno e fama. O pobre já se imaginava coroado pelo valor de seu braço com pelo menos o império de Trebizonda; e assim, com pensamentos tão agradáveis, levado pelo singular prazer que neles sentia, se apressou em realizar o que desejava.
E a primeira coisa que fez foi limpar uma armadura que tinha sido de seus bisavós, que, tomada de ferrugem e cheia de mofo, havia longos séculos estava atirada e esquecida num canto. Limpou-a e ajeitou-a o melhor que pôde, mas viu que havia um grande problema: não tinha elmo com viseira e sim morrião simples. Mas isso seu engenho supriu, porque fez com uma massa de papelão e cola uma espécie de meia viseira que, encaixada com o morrião, dava a ilusão de elmo completo. Para provar que era forte e podia correr o risco de uma cutilada, sacou a espada e lhe deu dois golpes, desfazendo num instante o trabalho de uma semana. A facilidade disso não deixou de lhe parecer má e, para se precaver contra esse perigo, tornou a fazer tudo de novo, pondo-lhe umas barras de ferro por dentro, de tal maneira que ficou satisfeito com sua fortaleza, mas, sem querer fazer nova experiência, tomou-o por finíssimo elmo com viseira.
Em seguida foi ver o pangaré e, embora tivesse os cascos mais rachados que os calcanhares de um camponês e mais defeitos que o cavalo de Gonela, que tantum pellis et ossa fuit, achou que nem o Bucéfalo de Alexandre nem o Babieca do Cid se igualavam a ele. Passou quatro dias imaginando que nome lhe daria, porque — conforme dizia a si mesmo — não havia motivo para que cavalo tão bom e de cavaleiro tão famoso ficasse sem nome; procurava então um que revelasse quem havia sido antes de ser de cavaleiro andante e o que era agora, pois achava muito razoável que, mudando seu senhor de estado, mudasse ele também de nome e o ganhasse célebre e aparatoso, como convinha à nova ordem e ao novo exercício que professava. Assim, depois de muitos nomes que criou, apagou e trocou, sobrepôs, desfez e tornou a fazer em sua memória e imaginação, finalmente veio a chamá-lo “Rocinante”, nome, em sua opinião, superior, sonoro e significativo do que tinha sido quando não passava de um rocim e o que era agora, o primeiro entre todos os rocins do mundo.
Batizado o cavalo com tanto acerto, quis dar um nome a si mesmo, e nesse pensamento gastou mais oito dias. No fim veio a se chamar “dom Quixote”, de onde, como foi dito, os autores desta história verídica puderam concluir que, sem dúvida, devia se chamar Queixada e não Queijada, como outros disseram. Mas, lembrando-se de que o corajoso Amadis não havia se contentado em se chamar apenas Amadis e acrescentara o nome de seu reino e pátria, para fazê-la famosa, chamando-se então Amadis de Gaula, quis assim, como bom cavaleiro, acrescentar ao seu o nome de sua pátria e se chamar “dom Quixote de la Mancha”, com o que, em sua opinião, declarava de forma viva sua linhagem e pátria, e a honrava ao tomar dela o sobrenome.
Assim, com a armadura limpa, o morrião feito elmo com viseira, batizado o pangaré e crismado a si mesmo, deu-se conta de que só faltava achar uma dama por quem se apaixonar: porque o cavaleiro andante sem amores era árvore sem folhas e sem fruto e corpo sem alma. Dizia a si mesmo:
Se eu, por mal de meus pecados, ou por minha boa sorte, me encontro por aí com algum gigante, como acontece sempre com os cavaleiros andantes, e o derrubo com um golpe ou lhe parto o corpo pela metade ou, enfim, o venço e o rendo, não será bom ter a quem mandá-lo de presente? Que vá e se prostre de joelhos diante de minha doce senhora e diga com voz humilde e submissa: “Eu, senhora, sou o gigante Caradeculiambro, senhor da ilha Malvadrânia, a quem venceu em singular batalha o jamais louvado como se deve cavaleiro dom Quixote de la Mancha, que mandou que me apresentasse a vossa mercê, para que vossa grandeza disponha de mim como bem quiser”.
Oh, como se alegrou nosso bom cavaleiro quando fez esse discurso, principalmente quando atinou a quem chamar sua dama! É que havia numa aldeia perto da sua, pelo que se pensa, uma camponesa de muito boa aparência por quem ele andou apaixonado um tempo, embora se acredite que ela jamais tenha sabido disso nem o tenha deixado provar de sua formosura. Chamava-se Aldonza Lorenzo, e ele achou bom lhe dar o título de senhora de seus pensamentos; e, procurando um nome que não destoasse muito do seu e insinuasse ou parecesse nome de princesa e grande senhora, veio a chamá-la “Dulcineia del Toboso”, porque era natural de El Toboso: nome, em sua opinião, musical e raro e significativo, como todos os demais que ele tinha posto em si e em suas coisas.
Miguel de Cervantes, in Dom Quixote de La Mancha

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