Vocês
desculpem tocar nesse assunto, mas a verdade é que está morrendo
muita gente. Outro dia peguei por acaso num antigo caderninho de
endereços que estava no fundo de uma gaveta, comecei a folhear e
esfriei: quanto telefone de gente que já morreu!
Eu
e um amigo estivemos imaginando uma Cidade dos Mortos que funcionasse
mais ou menos como esta em que vivemos: uma cidade em que estivessem
vivendo os mortos nossos conhecidos, os nossos mortos. Tinha muita
gente, e gente ótima; é verdade também que alguns chatos; isso faz
parte. Mas havia bons companheiros de praia, bons amigos de bar,
excelentes papos. Poucas, raras mulheres de nossa estima; as
mulheres, pelo visto, não costumam falecer.
O
pior — dizia meu amigo, e eu batia a cabeça tristemente, a
concordar —, o pior é que esse “lado de lá” vai aumentando, e
se a gente demorar muito por aqui acaba falando sozinho.
Outro
dia vi um velho na rua; andava lentamente e movia os lábios, como
quem fala para si mesmo. Devia estar conversando com algum amigo
morto. A certa altura ficou quieto, com o ar contrariado de quem está
ouvindo alguma coisa de que não gosta. Depois recomeçou a falar com
mais veemência.
Súbito,
calou-se outra vez. O morto estava lhe dizendo poucas, porém boas.
Ele tinha o ar ofendido.
O
pior dos mortos é que nunca telefonam. Aparecem sem avisar,
sentam-se numa poltrona e começam a falar. Tocam em assuntos que já
deviam estar esquecidos, e fazem perguntas demais. Subitamente fazem
silêncio. Esse silêncio é constrangedor. O morto tem um ar de
queixa e ao mesmo tempo um invisível sorriso de superioridade. Outro
dia eu perdi a paciência com um:
— “Está
bem, meu caro. Eu sei que V. tem toda razão, e a prova de sua
superioridade é que V. já está morto e eu ainda não cheguei a
essa fase. Mas você está me gozando e abusando um pouco de sua
qualidade de morto. Sei que não devia dizer isso, devia ser mais
delicado com você, mas acontece...”
Parei
de falar; ele tinha sumido. Não achei isso muito fino de sua parte.
Ele devia se abster de um truque assim, que eu, como vivo, não posso
usar. Essa ideia não me impedia de ter certo remorso.
O
que mais me irritou foi que uns quinze minutos depois ouvi sua risada
no ar, perto de minha janela. Não moro em nenhum arranha-céu,
apenas em um quinto andar. Mesmo assim já é abuso, um sujeito ficar
parado no ar, invisível, ali fora, fingindo que já se foi.
Está
visto que era um morto relativamente recente, ainda um pouco
novo-rico de sua própria morte. Imagino que todo morto vai ficando
um pouco mais discreto à medida que seus amigos e conhecidos também
morrem. Quando não resta mais nenhum mesmo na terra é que ele
começa a viver sossegado sua vida de morto.
Não
tenho nada contra o espiritismo, mas não acredito muito nessa
história de sujeitos que baixam em sessões de subúrbio, cem,
duzentos anos depois de morrer. Acho que depois de certa idade (idade
de falecido) o morto não acredita mais em espiritismo. Considera-o
uma impertinência dos vivos.
Tenho
poucas mortas. Mas como são queridas! O engraçado é que à medida
que o tempo passa elas vão ficando um pouco parecidas, vão-se
fazendo irmãs, mesmo as que jamais se conheceram. Aparecem raramente
e sempre caçoam um pouco de mim, mas com um jeito de carinho. Não
faz mal que não me levem muito a sério; não mereço.
Mas
a verdade é que nos piores momentos de minha vida sempre senti uma
imponderável mão em minha cabeça; então fecho os olhos e me
entrego a esse puro carinho, sem sequer me voltar para ver se é
minha mãe, minha irmã ou uma doce, infeliz amiga ou apenas a leve
brisa em meus cabelos.
Rubem
Braga, in Ai de ti, Copacabana
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