quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Como tudo aconteceu

Chovia lá fora, mas não dava para ouvir a chuva, a Sala de Interrogatório era à prova de som. Sanderson estava sob a quente luz branca. Era como uma cena de filme. Havia dois agentes. Um era gordo, malvestido, sapatos gastos, camisa suja, calças amassadas – era Eddie. O outro era magro, vestia-se com apuro, os sapatos reluziam, as calças estavam passadas, a camisa engomada e limpa – era Mike. Sanderson vestia camiseta, calças jeans velhas e um par de tênis batidos.
Eddie caminhava de um lado para o outro sobre o piso cimentado. Mike estava sentado numa cadeira. Ele encarava Sanderson. Sanderson estava sentado em frente à mesa de interrogatório. O gravador estava ligado.
Eddie parou de caminhar, colocou-se em frente a Sanderson.
Por que você escreveu aquelas cartas para o presidente?
Sanderson sacudiu a cabeça com enfado.
Já disse a vocês: este país está em perigo, o planeta todo está em perigo.
Eddie inspirou, dava para ver a enorme barriga entrando uns dois centímetros para dentro. Depois expirou e a barriga voltou a crescer dois centímetros, talvez mais.
É verdade que você foi condenado duas vezes por abuso sexual infantil?
Foi um tal de Harold L. Sanderson.
Não banque o espertinho! Duas vezes, certo?
Duas vezes.
Mike inclinou-se para frente. O lado esquerdo de seu rosto contraiu-se uma vez. Então parou.
Você se importa com o futuro do planeta, não é, Sanderson? Você quer aquelas menininhas por perto, não quer?
Gosto de crianças...
Mike fez menção de levantar da cadeira.
Seu nojento, não brinque com isso!
Eddie empurrou Mike de volta para o lugar.
Fique calmo. Estamos tentando chegar a outra coisa.
Simplesmente odeio lidar com essas aberrações. É isso que ele é, uma aberração, um maluco.
O Oswald também era. E a seu modo, John Wilkes Booth. Temos ordem de investigar esse aí de cabo a rabo.
Não estou tentando matar o presidente. Estou tentando salvá-lo.
Cala a boca! – disse Mike. – Você só vai falar quando alguém fizer uma pergunta.
Você sabe como os prisioneiros chamam esses caras? – Eddie perguntou a Mike. – Chamam de papa-anjos e têm uma maneira própria de lidar com eles.
Ei – perguntou Sanderson –, me consegue um cigarro?
Eddie tirou um de seu maço e praticamente enfiou na boca de Sanderson. Depois jogou seu isqueiro em cima da mesa.
Acenda você.
As mãos de Sanderson tremeram ao acender o cigarro.
Eddie caminhava para um lado, girava, depois voltava novamente para a frente de Sanderson.
Ok – ele disse –, vamos repassar a história. Apenas por formalidade.
Sanderson tragou o cigarro.
Bem, o mundo foi invadido.
Invadido por quem? – perguntou Eddie.
Baratas? Pulgas? Prostitutas?
Extraterrestres.
Extraterrestres?
Sim, eles estão por toda parte, estão só esperando.
Ok, papa-anjos – perguntou Mike –, onde eles estão esperando?
Bem, eles se apossaram de corpos de animais, pássaros, peixes, até mesmo insetos, e estão escondidos neles.
Mike soltou um risinho irônico, olhou para Eddie.
Ei, você tem um cachorro, Eddie. Está ciente de que ele é um extraterrestre?
Se for, o filho da puta deve ser louco por comida de cachorro!
Você notou – continuou Sanderson –, você notou que seu cachorro parou de perseguir gatos? Notou que os gatos pararam de pegar pássaros? Notou que as aranhas não comem mais moscas?
Não notei – disse Mike.
Nem eu – disse Eddie.
Vocês notaram que o falcão não mergulha mais para capturar a lebre?
Ouça, papa-anjos – disse Mike –, somos nós que fazemos as perguntas por aqui. Já disse antes para você só falar quando a gente mandar.
Sanderson olhou para baixo.
Você manteve uma daquelas garotinhas no seu trailer durante três dias – disse Mike. – Estou com vontade de dar uma boa surra em você...
Muito bem, Mike – disse Eddie –, nosso assunto agora é outro.
Depois olhou para Sanderson.
Então as aranhas pararam de comer as moscas? Por quê?
Porque cada uma delas é um extraterrestre disfarçado. Diferentemente dos terráqueos, os extraterrestres não destroem uns aos outros. E extraterrestres não precisam de comida. Eles possuem mecanismos internos de sobrevivência que não dependem de fontes externas.
Ah – disse Mike –, como um zoológico onde você não precisa alimentar os animais?
Se você verificar com o pessoal do zoológico, descobrirá que a jiboia não come mais ratos e camundongos.
Verificaremos amanhã de manhã – disse Eddie. – Por ora, me explique como meu cachorro devora toda a ração? Se ele é um extraterrestre?
Isso é uma fachada para que vocês tenham a ilusão de segurança até que chegue a hora de atacar.
Eddie deu mais uma caminhada ao longo do piso de cimento. Mike balançou-se uma vez na cadeira, então voltou a se acomodar. Eddie parou novamente em frente a Sanderson.
E os corpos humanos? – ele perguntou.
O que têm eles? – perguntou Sanderson.
Também foram invadidos?
Só alguns. Sabe os sujeitos daquela seita, que afirmam que podem viver apenas de ar? Bem, eles são extraterrestres.
Mike se recostou na cadeira e suspirou.
Bem, esse cara é louco de pedra...
Pois é – disse Eddie –, acho que isso é trabalho para um psiquiatra. Terei de fazer essa recomendação. Mas por ora, por formalidade, continuaremos o interrogatório.
Eddie deu sua caminhadinha ao longo do piso, voltou.
Agora me diga, Sanderson, se o que você está dizendo é verdade, como é que você sabe de tudo isso?
Eu não sei. Não entendo.
Mike se inclinou para frente, encarou Sanderson.
O seu corpo foi invadido por um extraterrestre?
Tudo o que sei é que nós confiamos na Fonte.
Mike estendeu a mão e agarrou a camiseta de Sanderson logo abaixo da gola.
Não me venha com respostas evasivas! O seu corpo foi invadido por um extraterrestre, papa-anjos?
Não sei...
De repente você ‘não sabe’ mais de nada!
Solte ele, Mike! Até parece que você está começando a acreditar na história dele.
Mike o soltou.
Só quero arrancar alguma coisa desse louco.
Eddie caminhou para o outro lado, para variar. Quando voltou, Sanderson perguntou a ele:
Pode me dar outro cigarro?
Eddie enfiou outro cigarro na boca de Sanderson.
Então extraterrestres fumam cigarros?
Não sei.
Basta – disse Eddie –, agora basta. Se essa invasão extraterrestre está prevista, quando vai ocorrer? E não me diga que você não sabe ou vou me lembrar daquelas menininhas e encher você de porrada!
Mas eu sei.
Você sabe?
Sim.
Quando?
Em menos de uma hora.
Puta que pariu! – disse Eddie fingindo pavor. Ele riu. Mike riu. Então pararam.
Eddie inclinou seu imenso corpo para perto de Sanderson.
Como você sabe disso, Sanderson?
Não sei. Confio na Fonte.
Ei – disse Mike –, agora voltamos para o círculo vicioso do ‘não sei’.
Acho que esse cretino viu muito filme de ficção científica – disse Eddie. – É um desses maníacos por Star Wars, Star Trek, E.T., só isso.
É – disse Mike –, e papa-anjos ainda por cima.
Escute, cara – ele continuou, batendo forte com o dedo no meio do peito de Sanderson –, o que leva um homem a molestar uma garotinha, afinal? Me diga, o que leva alguém a fazer uma coisa dessas?
Não fui eu que fiz aquilo – respondeu Sanderson.
Mike levantou o braço direito e bateu com bastante força no rosto de Sanderson, com as costas da mão. O cigarro que estava na boca de Sanderson voou longe com o golpe.
Também não fui eu que fiz isso.
Eddie ofereceu outro cigarro a Sanderson. Depois se virou para Mike.
Olha, Mike, este caso não é de alta prioridade, mas acho que talvez não estejamos lidando com essa situação de modo profissional. Tudo o que acontece aqui está sendo gravado, não se esqueça.
Como as fitas de Nixon, é isso?
Não exatamente. Nós provavelmente não perderemos nossos empregos. Mas vamos tentar ser um pouco mais profissionais em nossas atitudes.
Ok. É que detesto esses cretinos.
Ok, ok. Apenas mantenha a calma.
Eddie deu mais uma caminhada e voltou a parar em frente a Sanderson.
Muito bem, digamos que você seja um extraterrestre. Neste caso, por que tentaria alertar o mundo contra uma invasão iminente?
Em primeiro lugar, confio na Fonte. Creio que estou fazendo o que tenho de fazer.
Explique melhor.
Está bem, talvez eu tenha, de alguma forma, perdido o contato, sabe, algo como um curto-circuito, e embora tenha o conhecimento dos extraterrestres, estou também, ao mesmo tempo, sujeito às relações humanas e portanto solidário a elas.
Agora estamos realmente chegando ao ponto...
O gravador estalou.
Mike se aproximou, desligou o aparelho, colocou uma nova fita e o ligou de novo.
Eddie limpou a garganta:
Como eu estava dizendo, agora estamos realmente chegando a algum lugar. Então, agora, se tudo isso é verdade, não acha que seus companheiros espaciais estão putos da cara por você estar divulgando tudo isso?
Bem, esta é a Fonte. E depois eles vão perceber que sou ruim das ideias e que a culpa não é minha. Os erros continuam existindo, mesmo no mundo deles.
Eddie esfregou os dedos sobre a enorme mancha em sua camisa suja.
Bem, Sanderson, o interrogatório está encerrado. Vou recomendar que você faça um exame psiquiátrico.
Eddie fez um sinal de concordância em direção a Mike. Mike parou o gravador, inclinou-se sobre a mesa e apertou um botão.
A porta se abriu e um guarda entrou.
Leve este homem de volta para a cela, O’Conner – disse Eddie.
O’Conner era quase tão gordo quanto Eddie. Ele tinha uma filha ainda jovem, que estudava balé e que esculpia muito bem. O’Conner puxou a arma do coldre, retirou a trava de segurança, puxou o gatinho e disparou uma bala entre os olhos de Eddie. Eddie ficou um momento parado, depois caiu direto para a frente. As duas próximas balas esmigalharam os miolos de Mike.
Sanderson ficou de pé.
O’Conner, por que você tem que matar alguns deles? Por que não podemos apenas tomar seus corpos?
Não sei – respondeu O’Conner –, a Fonte sabe.
O’Conner saiu da sala e seguiu em direção ao corredor e Sanderson o seguiu.
Snyxikolivks – disse O’Conner.
Previxcloslovckkkov – respondeu Sanderson.

Epílogo

Naquele momento o presidente dos ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA se abaixava para acariciar seu cachorro. O nome do cachorro era Clyde. Clyde era um vira-lata velho, mas era esperto: podia buscar o New York Times ou mijar na perna imponente de um imponente membro do congresso em até quinze segundos depois de receber o sinal. Era um excelente cachorro. Sua presença era permitida na Sala Oval. Clyde e o presidente estavam ali sozinhos, a Segurança um pouco mais além.
O presidente se abaixou para acariciar Clyde. Clyde abanou o rabo e esperou. Assim que o presidente se aproximou mais, Clyde deu um salto, rosnando, em busca da jugular, mas errou o golpe, atacando, em vez disso, a orelha esquerda. O presidente caiu sobre o tapete, segurando o lado esquerdo da cabeça com a mão.
Lá fora, havia parado de chover.
Clyde voltou a rosnar, saltou sobre o presidente, encontrou a jugular, rasgou-a, e o bombear purpúreo de sangue fétido teve início. O presidente se levantou. Agarrando a garganta com uma das mãos, arrastou-se em direção à mesa e com a mão livre fez deslizar um painel secreto, e, enquanto Clyde o observava, sentado no canto mais extremo da parte nordeste da Sala Oval, o presidente apertou o botão, o botão vermelho que disparava as ogivas.
Por que tinha feito aquilo, não saberia dizer. Talvez a Fonte soubesse.
O presidente dos ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA caiu sobre o tampo da mesa enquanto na Terra as criaturas do espaço retornavam para o espaço, e as aranhas começaram a capturar moscas e a lhes sugar o sangue, e os gatos começaram a capturar passarinhos, e os cachorros começaram a perseguir os gatos, e as boas constritoras começaram a comer os ratos e os camundongos e as águias foram em busca das lebres – por um período, por um período muito curto.
Charles Bukowski, in Pedaços de um caderno manchado de vinho

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