Chovia
lá fora, mas não dava para ouvir a chuva, a Sala de Interrogatório
era à prova de som. Sanderson estava sob a quente luz branca. Era
como uma cena de filme. Havia dois agentes. Um era gordo, malvestido,
sapatos gastos, camisa suja, calças amassadas – era Eddie. O outro
era magro, vestia-se com apuro, os sapatos reluziam, as calças
estavam passadas, a camisa engomada e limpa – era Mike. Sanderson
vestia camiseta, calças jeans velhas e um par de tênis batidos.
Eddie
caminhava de um lado para o outro sobre o piso cimentado. Mike estava
sentado numa cadeira. Ele encarava Sanderson. Sanderson estava
sentado em frente à mesa de interrogatório. O gravador estava
ligado.
Eddie
parou de caminhar, colocou-se em frente a Sanderson.
– Por
que você escreveu aquelas cartas para o presidente?
Sanderson
sacudiu a cabeça com enfado.
– Já
disse a vocês: este país está em perigo, o planeta todo está em
perigo.
Eddie
inspirou, dava para ver a enorme barriga entrando uns dois
centímetros para dentro. Depois expirou e a barriga voltou a crescer
dois centímetros, talvez mais.
– É
verdade que você foi condenado duas vezes por abuso sexual infantil?
– Foi
um tal de Harold L. Sanderson.
– Não
banque o espertinho! Duas vezes, certo?
– Duas
vezes.
Mike
inclinou-se para frente. O lado esquerdo de seu rosto contraiu-se uma
vez. Então parou.
– Você
se importa com o futuro do planeta, não é, Sanderson? Você quer
aquelas menininhas por perto, não quer?
– Gosto
de crianças...
Mike
fez menção de levantar da cadeira.
– Seu
nojento, não brinque com isso!
Eddie
empurrou Mike de volta para o lugar.
– Fique
calmo. Estamos tentando chegar a outra coisa.
–
Simplesmente odeio lidar com essas
aberrações. É isso que ele é, uma aberração, um maluco.
– O
Oswald também era. E a seu modo, John Wilkes Booth. Temos ordem de
investigar esse aí de cabo a rabo.
– Não
estou tentando matar o presidente. Estou tentando salvá-lo.
– Cala
a boca! – disse Mike. – Você só vai falar quando alguém fizer
uma pergunta.
– Você
sabe como os prisioneiros chamam esses caras? – Eddie perguntou a
Mike. – Chamam de papa-anjos e têm uma maneira própria de lidar
com eles.
– Ei
– perguntou Sanderson –, me consegue um cigarro?
Eddie
tirou um de seu maço e praticamente enfiou na boca de Sanderson.
Depois jogou seu isqueiro em cima da mesa.
–
Acenda você.
As
mãos de Sanderson tremeram ao acender o cigarro.
Eddie
caminhava para um lado, girava, depois voltava novamente para a
frente de Sanderson.
– Ok
– ele disse –, vamos repassar a história. Apenas por
formalidade.
Sanderson
tragou o cigarro.
– Bem,
o mundo foi invadido.
–
Invadido por quem? – perguntou Eddie.
–
Baratas? Pulgas? Prostitutas?
–
Extraterrestres.
–
Extraterrestres?
– Sim,
eles estão por toda parte, estão só esperando.
– Ok,
papa-anjos – perguntou Mike –, onde eles estão esperando?
– Bem,
eles se apossaram de corpos de animais, pássaros, peixes, até mesmo
insetos, e estão escondidos neles.
Mike
soltou um risinho irônico, olhou para Eddie.
– Ei,
você tem um cachorro, Eddie. Está ciente de que ele é um
extraterrestre?
– Se
for, o filho da puta deve ser louco por comida de cachorro!
– Você
notou – continuou Sanderson –, você notou que seu cachorro parou
de perseguir gatos? Notou que os gatos pararam de pegar pássaros?
Notou que as aranhas não comem mais moscas?
– Não
notei – disse Mike.
– Nem
eu – disse Eddie.
– Vocês
notaram que o falcão não mergulha mais para capturar a lebre?
– Ouça,
papa-anjos – disse Mike –, somos nós que fazemos as perguntas
por aqui. Já disse antes para você só falar quando a gente mandar.
Sanderson
olhou para baixo.
– Você
manteve uma daquelas garotinhas no seu trailer durante três dias –
disse Mike. – Estou com vontade de dar uma boa surra em você...
– Muito
bem, Mike – disse Eddie –, nosso assunto agora é outro.
Depois
olhou para Sanderson.
– Então
as aranhas pararam de comer as moscas? Por quê?
–
Porque cada uma delas é um
extraterrestre disfarçado. Diferentemente dos terráqueos, os
extraterrestres não destroem uns aos outros. E extraterrestres não
precisam de comida. Eles possuem mecanismos internos de sobrevivência
que não dependem de fontes externas.
– Ah
– disse Mike –, como um zoológico onde você não precisa
alimentar os animais?
– Se
você verificar com o pessoal do zoológico, descobrirá que a jiboia
não come mais ratos e camundongos.
–
Verificaremos amanhã de manhã – disse
Eddie. – Por ora, me explique como meu cachorro devora toda a
ração? Se ele é um extraterrestre?
– Isso
é uma fachada para que vocês tenham a ilusão de segurança até
que chegue a hora de atacar.
Eddie
deu mais uma caminhada ao longo do piso de cimento. Mike balançou-se
uma vez na cadeira, então voltou a se acomodar. Eddie parou
novamente em frente a Sanderson.
– E
os corpos humanos? – ele perguntou.
– O
que têm eles? – perguntou Sanderson.
–
Também foram invadidos?
– Só
alguns. Sabe os sujeitos daquela seita, que afirmam que podem viver
apenas de ar? Bem, eles são extraterrestres.
Mike
se recostou na cadeira e suspirou.
– Bem,
esse cara é louco de pedra...
– Pois
é – disse Eddie –, acho que isso é trabalho para um psiquiatra.
Terei de fazer essa recomendação. Mas por ora, por formalidade,
continuaremos o interrogatório.
Eddie
deu sua caminhadinha ao longo do piso, voltou.
– Agora
me diga, Sanderson, se o que você está dizendo é verdade, como é
que você sabe de tudo isso?
– Eu
não sei. Não entendo.
Mike
se inclinou para frente, encarou Sanderson.
– O
seu corpo foi invadido por um extraterrestre?
– Tudo
o que sei é que nós confiamos na Fonte.
Mike
estendeu a mão e agarrou a camiseta de Sanderson logo abaixo da
gola.
– Não
me venha com respostas evasivas! O seu corpo foi invadido por um
extraterrestre, papa-anjos?
– Não
sei...
– De
repente você ‘não sabe’ mais de nada!
– Solte
ele, Mike! Até parece que você está começando a acreditar na
história dele.
Mike
o soltou.
– Só
quero arrancar alguma coisa desse louco.
Eddie
caminhou para o outro lado, para variar. Quando voltou, Sanderson
perguntou a ele:
– Pode
me dar outro cigarro?
Eddie
enfiou outro cigarro na boca de Sanderson.
– Então
extraterrestres fumam cigarros?
– Não
sei.
– Basta
– disse Eddie –, agora basta. Se essa invasão extraterrestre
está prevista, quando vai ocorrer? E não me diga que você não
sabe ou vou me lembrar daquelas menininhas e encher você de porrada!
– Mas
eu sei.
– Você
sabe?
– Sim.
–
Quando?
– Em
menos de uma hora.
– Puta
que pariu! – disse Eddie fingindo pavor. Ele riu. Mike riu. Então
pararam.
Eddie
inclinou seu imenso corpo para perto de Sanderson.
– Como
você sabe disso, Sanderson?
– Não
sei. Confio na Fonte.
– Ei
– disse Mike –, agora voltamos para o círculo vicioso do ‘não
sei’.
– Acho
que esse cretino viu muito filme de ficção científica – disse
Eddie. – É um desses maníacos por Star Wars, Star Trek, E.T., só
isso.
– É
– disse Mike –, e papa-anjos ainda por cima.
–
Escute, cara – ele continuou, batendo
forte com o dedo no meio do peito de Sanderson –, o que leva um
homem a molestar uma garotinha, afinal? Me diga, o que leva alguém a
fazer uma coisa dessas?
– Não
fui eu que fiz aquilo – respondeu Sanderson.
Mike
levantou o braço direito e bateu com bastante força no rosto de
Sanderson, com as costas da mão. O cigarro que estava na boca de
Sanderson voou longe com o golpe.
–
Também não fui eu que fiz isso.
Eddie
ofereceu outro cigarro a Sanderson. Depois se virou para Mike.
– Olha,
Mike, este caso não é de alta prioridade, mas acho que talvez não
estejamos lidando com essa situação de modo profissional. Tudo o
que acontece aqui está sendo gravado, não se esqueça.
– Como
as fitas de Nixon, é isso?
– Não
exatamente. Nós provavelmente não perderemos nossos empregos. Mas
vamos tentar ser um pouco mais profissionais em nossas atitudes.
– Ok.
É que detesto esses cretinos.
– Ok,
ok. Apenas mantenha a calma.
Eddie
deu mais uma caminhada e voltou a parar em frente a Sanderson.
– Muito
bem, digamos que você seja um extraterrestre. Neste caso, por que
tentaria alertar o mundo contra uma invasão iminente?
– Em
primeiro lugar, confio na Fonte. Creio que estou fazendo o que tenho
de fazer.
–
Explique melhor.
– Está
bem, talvez eu tenha, de alguma forma, perdido o contato, sabe, algo
como um curto-circuito, e embora tenha o conhecimento dos
extraterrestres, estou também, ao mesmo tempo, sujeito às relações
humanas e portanto solidário a elas.
– Agora
estamos realmente chegando ao ponto...
O
gravador estalou.
Mike
se aproximou, desligou o aparelho, colocou uma nova fita e o ligou de
novo.
Eddie
limpou a garganta:
– Como
eu estava dizendo, agora estamos realmente chegando a algum
lugar. Então, agora, se tudo isso é verdade, não acha que seus
companheiros espaciais estão putos da cara por você estar
divulgando tudo isso?
– Bem,
esta é a Fonte. E depois eles vão perceber que sou ruim das
ideias e que a culpa não é minha. Os erros continuam existindo,
mesmo no mundo deles.
Eddie
esfregou os dedos sobre a enorme mancha em sua camisa suja.
– Bem,
Sanderson, o interrogatório está encerrado. Vou recomendar que você
faça um exame psiquiátrico.
Eddie
fez um sinal de concordância em direção a Mike. Mike parou o
gravador, inclinou-se sobre a mesa e apertou um botão.
A
porta se abriu e um guarda entrou.
– Leve
este homem de volta para a cela, O’Conner – disse Eddie.
O’Conner
era quase tão gordo quanto Eddie. Ele tinha uma filha ainda jovem,
que estudava balé e que esculpia muito bem. O’Conner puxou a arma
do coldre, retirou a trava de segurança, puxou o gatinho e disparou
uma bala entre os olhos de Eddie. Eddie ficou um momento parado,
depois caiu direto para a frente. As duas próximas balas
esmigalharam os miolos de Mike.
Sanderson
ficou de pé.
–
O’Conner, por que você tem que matar
alguns deles? Por que não podemos apenas tomar seus corpos?
– Não
sei – respondeu O’Conner –, a Fonte sabe.
O’Conner
saiu da sala e seguiu em direção ao corredor e Sanderson o seguiu.
–
Snyxikolivks – disse O’Conner.
–
Previxcloslovckkkov – respondeu
Sanderson.
Epílogo
Naquele
momento o presidente dos ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA se abaixava para
acariciar seu cachorro. O nome do cachorro era Clyde. Clyde era um
vira-lata velho, mas era esperto: podia buscar o New York Times ou
mijar na perna imponente de um imponente membro do congresso em até
quinze segundos depois de receber o sinal. Era um excelente cachorro.
Sua presença era permitida na Sala Oval. Clyde e o presidente
estavam ali sozinhos, a Segurança um pouco mais além.
O
presidente se abaixou para acariciar Clyde. Clyde abanou o rabo e
esperou. Assim que o presidente se aproximou mais, Clyde deu um
salto, rosnando, em busca da jugular, mas errou o golpe, atacando, em
vez disso, a orelha esquerda. O presidente caiu sobre o tapete,
segurando o lado esquerdo da cabeça com a mão.
Lá
fora, havia parado de chover.
Clyde
voltou a rosnar, saltou sobre o presidente, encontrou a jugular,
rasgou-a, e o bombear purpúreo de sangue fétido teve início. O
presidente se levantou. Agarrando a garganta com uma das mãos,
arrastou-se em direção à mesa e com a mão livre fez deslizar um
painel secreto, e, enquanto Clyde o observava, sentado no canto mais
extremo da parte nordeste da Sala Oval, o presidente apertou o botão,
o botão vermelho que disparava as ogivas.
Por
que tinha feito aquilo, não saberia dizer. Talvez a Fonte soubesse.
O
presidente dos ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA caiu sobre o tampo da mesa
enquanto na Terra as criaturas do espaço retornavam para o espaço,
e as aranhas começaram a capturar moscas e a lhes sugar o sangue, e
os gatos começaram a capturar passarinhos, e os cachorros começaram
a perseguir os gatos, e as boas constritoras começaram a comer os
ratos e os camundongos e as águias foram em busca das lebres – por
um período, por um período muito curto.
Charles
Bukowski, in Pedaços de um caderno manchado de vinho
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