Quem
amamos nasce antes de haver o tempo. Passou o tempo e Ofélia era
ainda a única mulher no mundo. Eu a via passar na rua, afastava os
cortinados e o universo ganhava súbita explicação. Ela parava no
passeio, sentindo que estava sendo contemplada. Meus olhos a tornavam
sagrada. E não havia palavra.
Passou
o tempo mas a cintura dela se conservava menininha, convidando as
mãos a circum-navegarem seu corpo.
—Você
é linda, Ofélia.
Mas
ela! Não eram essas as palavras que mexiam em sua alma.
—Diga
que sou eterna — pedia.
Eu
não era capaz de cumprir aquele pedido. Algum senão me desviava a
voz. E nunca repeti tão solicitadas palavras.
Afinal,
o destino nos separou. Único culpado dessa pequena morte: o tempo,
esse animal que defeca memórias. Eu fui para a cidade, ela
permaneceu onde sempre existira. No último momento, afastei a
cortina e a vi sob a árvore. Saí para me despedir:
—Está
apanhando sombra?
—Estou
sendo sombra, eu.
Ela
se entregava a enigmas, frases desfeitas. Anunciei:
—Vou
para o litoral.
—Vai
ver o mar?
—Certamente.
Antes
de eu desaparecer ela me pediu outra vez. Não queria eu proclamar
sua eternidade? Abanei a cabeça. Dessa vez até aceitei um esforço.
Mas, debaldemente. Aquelas palavras me pareciam uma heresia, coisa
demasiado excessiva. Eternidade é assunto divino. Mais sagrado que a
morte.
Saí
por anos. Foi mais a ausência que o afastamento. Regressei à
pequena vila para a reencontrar. Ofélia já reeditara sua
existência. Tivera seis filhos. Dois que já não constavam,
vencidos por um correr das águas. Dizem. Naquelas mortes de seus
meninos ela morrera também. Ela fora com eles. Para esse inominável
lá.
—De
lá já voltei ninguém— disse ela, pedindo desculpas de sua
tristeza quando nos reencontrámos.
Atacada
de incorrigível melancolia. Agora, ela se tinha toda convertido em
sombra. E nenhuma luz lhe dava alento. O luto em seus olhos me
avisou: os cortinados de meu quarto se fechariam sobre todas as ruas
onde ela passasse.
Sugeri
lhe que nos déssemos encontro. Breve, sem consequência. Marcámos
nas traseiras dos Correios. Cheguei me e não soube que palavras
escolher. O momento pedia me um idioma que não há. Eu me faltava.
Ela me olhou como se eu fosse quem tivesse demorado. Como se eu fosse
culpado.
—Vou
lhe contar uma história— disse eu apenas para amachucar o
silêncio.
Ela
reagiu prontamente:
—Nunca,
mas nunca, me conte histórias.
Era
tanta a veemência que eu me atrapalhei com o sem querer da minha
ofensa.
—Odeio
história — rematou ela.
Deixou
uma pausa, esperando em pose e apelo. Aguardava, quem sabe, que eu
perguntasse porquê. Como eu me mantivesse mudo, ela somou:
—História
é contra a eternidade.
Acenei
com a cabeça. Perdera os filhos, não perdera aquela viciada ideia.
—Sou
eterna, não lembra?
Depois
ela me segurou na mão e me perguntou:
—Me
trouxe um mar?
—Sim.
Mentira.
Eu só podia mentir perante o pedido. Ela ficou, imóvel, esperando.
Esperava? Que mar lhe havia eu de dar, se nenhum me coubera, nem grão
de areia, nem concha, nem búzio. E, no entanto, ela estava defronte
a mim como se aquele momento resumisse toda nossa existência. Fiquei
tão desarmado que uma lágrima desaflorou em meus olhos. Depois
aconteceu, sem decisão pensada. Aquilo me saiu, à parte de minha
vontade. De repente, quase imperceptíveis, as palavras me afluíram:
—Você
é eterna, Ofélia.
Ela
levantou o rosto e me enfrentou como se me descobrisse em primeira
vez. Se aproximou e me beijou. Estendeu os dedos e recolheu esse
esboço de água em meus olhos. Depois, com voz sumida:
—Obrigada
por este mar.
Desde
aquele momento, nunca mais voltaram a morrer seus dois filhos
falecidos. Que eu diria: meus dois filhos de lá. Porque sou Ofélia,
eu mesmo que desfolho esta estória. Sim, sou a mulher a quem, certa
vez, na ponta dos dedos, foi oferecido o mar. O resto é a minha
eternidade contra a história. Pois nunca existiu homem nenhum que me
tivesse amado e empreendesse, alguma vez, viagem alguma para além
deste lugar.
Mia
Couto, in Na berma de nenhuma estrada
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