Era
uma vez o menino pequenito, tão minimozito que todos seus dedos eram
mindinhos. Dito assim, fino modo, ele, quando nasceu, nem foi dado à
luz mas a uma simples fresta de claridade.
De
tão miserenta, a mãe se alegrou com o destamanho do rebento —
assim pediria apenas os menores alimentos. A mulher, em si, deu
graças: que é bom a criança nascer assim desprovida de peso que é
para não chamar os maus espíritos. E suspirava, enquanto
contemplava a diminuta criatura. Olhar de mãe, quem mais pode apagar
as feiuras e defeitos nos viventes?
Ao
menino nem se lhe ouvia o choro. Sabia se de sua tristeza pelas
lágrimas. Mas estas, de tão leves, nem lhe desciam pelo rosto. As
lagriminhas subiam pelo ar e vogavam suspensas. Depois, se fixavam no
tecto e ali se grutavam, missangas tremeluzentes.
Ela
pegava no menino, com uma só mão. E falava, mansinho, para essa
concha. Na realidade, não falava: assobiava, feita uma ave. Dizia
que o filho não tinha entendimento para palavra. Só língua de
pássaro lhe tocaria o reduzido coração. Quem podia entender? Ele
há dessas coisas tão subtis, incapazes mesmo de existir. Como essas
estrelas que chegam até nós mesmo depois de terem morrido. A
senhora não se importava com os dizquedizeres. Ela mesmo tinha
aprendido a ser de outra dimensão, florindo como o capim: sem cor
nem cheiro.
A
mãe só tinha fala na igreja. No resto, pouco falava. O marido,
descrente de tudo, nem tinha tempo para ser desempregado. O homem era
um fiorrapo, despacha gargalos, entorna fundos. Do bar para o quarto,
de casa para a cervejaria.
Pois,
aconteceu o seguinte: dadas as dimensões de sua vida e não homem
passou a calçar de um só pé. Só na ida isso o incomodava. Na
volta, ele nem se apercebia de ter pés, dois na mesma direção.
Em
casa, na quentura da palmilha, o miúdo aprendia já o lugar do
pobre: nos embaixos do mundo. Junto ao chão, tão rés e rasteiro
que, em morrendo, dispensaria quase o ser enterrado. Uma peúga
desirmandada lhe fazia de cobertor. O frio estreitasse e a mulher se
levantava de noite para repuxar a trança dos atacadores. Assim lhe
calçava um aconchego. Todas as manhãs, de prevenção, ela avisava
os demais e demasiados:
—
Cuidado, já dentrei o menino no
sapato.
Que
ninguém, por descuido, o calçasse. Muito muito, o marido quando
voltava bêbado e queria sair uma vez mais, desnoitado, sem
distinguir o mais esquerdo do menos esquerdo. A mulher não deixava
que o berço fugisse da vislembrança dela. Porque o marido já se
outorgava, cheio de queixa:
—
Então, ando para aqui improvisar um
coxinho?
— É
seu filho, pois não?
— O
diabo que te descarregue!
E
apontava o filhote: o individuozito interrompia o seu calçado? Pois
que, sendo aqueles seus exclusivos e únicos sapatos, ele se
despromoveria para um chinelado?
— Sim
— respondeu a mulher. — Eu já lhe dei os meus chinelos.
Mas
não dava jeito naqueles areais do bairro. Ela devia saber: a pessoa
pisa o chão e não sabe se há mais areia em baixo que em cima do
pé.
— Além
disso, eu é que paguei os tais sapatos.
Palavras.
Porque a mãe respondia com sentimentos:
— Veja
o seu filho, parece o Jesuzinho empalhado, todo embrulhadinho nos
bichos de cabedal.
Ainda
o filho estava melhor que Cristo — ao menos um sapato já não é
bicho em bruto. Era o argumento dela mas ele, nem querendo saber,
subia de tom:
—Cá
se fazem, cá se apagam!
O
marido azedava e começou a ameaçar: se era para lhe desalojar o
definitivo pé, então, o melhor seria desfazerem se do vindouro. A
mãe, estarrecida, fosse o fim de todos os mundos:
—Vai
o quê fazer?
—Vou
é desfazer.
Ela
prometia lhe um tempo, na espera que o bebé graudasse. Mas o assunto
azedava e até degenerou em soco, punhos ciscando o escuro. Os olhos
dela, amendoídos ainda, continuaram espreitando o improvisado berço.
Ela sabia que os anjos da guarda estão a preços que os pobres nem
ousam.
Até
que o ano findou, esgotada a última folha do calendário. Vinda da
igreja, a mãe descobriu se do véu e anunciou que iria compor a
árvore de Natal. Sem despesa nem sobrepeso. Tirou à lenha um tosco
arbusto. Os enfeites eram tampinhas de cerveja, sobras da bebedeira
do homem. Junto à árvore ela rezou com devoção de Eva antes de
haver a macieira. Pediu a Deus que fosse dado ao seu menino o tamanho
que lhe era devido. Só isso, mais nada. Talvez, depois, um adequado
berço. Ou quem sabe, um calçado novo para o seu homem. Que aquele
sapato já espreitava pelo umbigo, o buraco na frente autorizando o
frio.
Na
sagrada antenoite, a mulher fez como aprendera dos brancos: deixou o
sapatinho na árvore para uma qualquer improbabilíssima oferta que
lhe miraculasse o lar.
No
escuro dessa noite, a mãe não dormiu, seus ouvidos não
esmoreceram. Despontavam as primeiras horas quando lhe pareceu
escutar passos na sala. E depois, o silêncio. Tão espesso que tudo
se afundou e a mãe foi engolida pelo cansaço.
Acordou
cedo e foi direta ao arbusto de Natal. Dentro do sapato, porém, só
o vago vazio, a redonda concavidade do nada. O filho desaparecera?
Não para os olhos da mãe. Que ele tinha sido levado por lá no
teto já não brilhavam as lágrimas do seu menino. Mas ela desviou
o olhar, que essa é a competência de mãe: o não enxergar nunca a
curva onde o escuro faz extinguir o mundo.
Mia
Couto, in Na berma de nenhuma estrada
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