Ilustração: Nikolaus Heidelbach
Quando
me vieram chamar, nem acreditei: – É Zuzézinho! Está caindo do
prédio.
E
as gentes, em volta, se depressavam para o sucedido. Me juntei às
correrias, a pergunta zaranzeando: o homem estava caindo? Aquele
gerúndio era um desmando nas graves leis da gravidade: quem cai, já
caiu.
Enquanto
corria, meu coração se constringia. Antevia meu velho amigo
estatelado na calçada. Que sucedera para se suicidar, desabismado?
Que tropeção derrubara a sua vida? Podia ser tudo: os tempos de
hoje são lixívia, descolorindo os encantos.
Me
aproximava do prédio e já me aranhava na multidão. Coisa de
inacreditar: olhavam todos para cima. Quando fitei os céus, ainda
mais me perturbei: lá estava, pairando como águia real, o Zuzé
Neto. O próprio José Antunes Marques Neto, em artes de aero-anjo.
Estava caindo? Se sim, vinha mais lento que o planar do planeta pelos
céus.
Atirara-se
quando? Já na noite anterior, mas o povo só notara no sequente dia.
Amontara-se
logo a mundidão e, num fósforo, se fabricaram explicações,
epistemologias.
Que
aquilo provinha de ele ter existência limpa: lhe dava a requerida
leveza. Fosse um político e, com o peso da consciência, desfechava
logo de focinho. Outros se opunham: naquele estado de pelicano, o
cidadão fugia era de suas dívidas. Ninguém cobra no ar.
Houve
até versão dedicadamente cristã. Um mirone, longilongo, vestido
como se coubesse numa só manga, bradejou apontando o firmamento: –
Aquilo, meus senhores, é o novo Cristo.
E
o magricela prosseguiu, em berros: Cristo nos escancarou as portas de
quê? Do céu, caros confrades. Do céu. Pois agora, o
supramencionado Zuzé nos mostrava o caminho celestial. E fazia-o sem
ter que morrer, o que era uma reconhecida vantagem.
–
Aquilo,
meus senhores, é o Cristo descrucificado.
Mandaram
que calasse. Outros, mais práticos, se ocupavam com o que se iria
seguir. E vaticinavam um fim, enfim: – O tipo vai demorar assim,
uma infinidade de dias.
– Vai
é morrer de sede e fome.
Se
nem na terra se comia nas vigentes condições, quanto menos nas
nuvens. A mim me abalava era a urgência de meter mãos na obra.
Alguém devia fazer a certeira coisa. E gritei, entre os zunzuns: –
Chamaram os bombeiros? Sim, mas estavam em greve. Estivessem no ativo
faria pouca diferença: eles não tinham carros, nem escada, nem
vontade. Eram, na verdade, bombeiros bastante involuntários.
Fazia-se
tarde, as pessoas reentravam. Ficaram uns quantos, escassos e
silenciosos.
Voltei
a olhar. – A chover assim, o tipo vai ensopar, ganhar peso e
desandar por aí abaixo.
Os
deuses tivessem ouvidos. Parou de chover. E os dias seguintes
prosseguiam como se o próprio ar tivesse parado. O voo de Zuzé já
era um atractivo da cidade.
Negócios
vários se instalaram. Turistas adquiriam bilhetes, cicerones do
fantástico explicavam versões inéditas de como Zuzé nascera com
penas no sovaco e descendia de uma família de secretos voadores. O
fulano era o congénito destrapezista. O próprio tio alugava um
megafone para que enviassem mensagens e votos de boas bênçãos. Até
eu paguei para falar com o meu velho amigo. Quando, porém, me vi com
o megafone não soube o que dizer. E devolvi o instrumento.
De
fato, vieram as autoridades devidas, por via do chefe máximo das
forças policiais se fizeram ouvir por devido altifalante: – Desça
em nome da lei! O político por trás lhe segredava as deixas. As
massas, os eleitores, ansiavam por um desempenho.
–
Continue
a dar ordens. Continue, mais firme! – incitava o político. O
porta-voz obedecia, estridenteando: – O seu comportamento, caro
concidadão, é verdadeiramente antidemocrático.
Contra
os direitos humanos, bichanava o político. Contra a imagem de
estabilidade de que a nação carecia, ainda acrescentou o falante.
Os doadores internacionais se espantariam com o desacontecimento. Mas
Zuzé nem água ia nem água vinha. Sorria, em trejeito malandro.
E,
agora, pronto: ponho ponto. Nem me alongo para não esticar engano.
Pois tudo o que vos contei, o voo de Zuzé e a multidão cá em
baixo, tudo isso de um sonho se tratou.
Suspirados
fiquemos, de alívio. A realidade é mais rasteira, feita de peso e
de pés na terra.
Mas
eu, no dia seguinte, não estava certo do meu sossego. E fui ao local
para me certificar de quanto eu devaneara. Encontrei tudo arrumado no
regime da cidade. Lá estava o céu, vazio de humanos voadores.
Só
o competente azul, a evasiva nuvem. E os pássaros mais sua avegação.
E mais a praça, bem terrestre, desumanamente humana. Tudo sem
notícia, tudo pouco sonhável.
De
repente, vi a moça. A mesma do sonho. Ela, sem tirar nem opor. E,
para mais, continuava olhando os céus. Me cheguei e ela, sem deixar
de olhar para o firmamento, sussurrou: – Já não o vejo. E o
senhor? – Eu, o quê? – O senhor consegue ver Zuzé? Menti que
sim. Afinal, mais valia um pássaro. Mesmo de fingir. Deixássemos
Zuzé voar, ele já não tinha onde tombar. Neste mundo, não há
pouso para aves dessas. Onde ele anda, é outro céu.
Mia
Couto,
in O fio das missangas
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