A
primeira vantagem do eu fictício a quem nos endereçamos é a de que
ele realmente nos ouve. Ele está sempre a postos; nunca nos dá as
costas. Não simula interesse; não é gentil. Ele não nos
interrompe; deixa-nos falar. Não é só curioso, mas também
paciente. Só posso falar aqui de minha própria experiência, mas
espanta-me continuamente o fato de que exista alguém que me ouça
com tanta paciência como eu a outros. Não se pense, contudo, que
esse ouvinte torna as coisas mais fáceis para nós. Tendo o mérito
de nos entender, em nada podemos enganá-lo. Não é só paciente,
mas também malévolo. Não deixa passar nada, vê tudo. Registra o
menor detalhe, e, assim que nos pusermos a dissimulá-lo, apontará
para ele com veemência. Em toda a minha vida, já sexagenária,
ainda não encontrei um interlocutor tão perigoso, mesmo tendo
conhecido alguns que não causariam vergonha a ninguém. Talvez sua
vantagem especial resida no fato de que tal interlocutor não defende
nenhum interesse próprio. Ele tem todas as reações de uma pessoa,
sem suas motivações. Não defende nenhuma teoria, nem se beneficia
de nenhuma descoberta. Seu instinto para detectar manifestações de
poder ou vaidade é enorme. Naturalmente, favorece-o o fato de nos
conhecer a fundo.
Se
percebe algo incorreto — insuficiência de conhecimento, fraqueza
ou preguiça — cai sobre mim como um raio. Se digo “Isso não é
importante; para mim importa algo mais que minha pessoa, importa o
estado do mundo, tenho de advertir — eis tudo”, ele ri na minha
cara. “Mesmo assim”, responde. Permito-me citá-lo textualmente
aqui: “O erro de todos os benfeitores” — e esta palavra infame
já me fere — “é que eles, apesar da responsabilidade que sentem
e do bem que talvez realmente desejem, esquecem-se de desenvolver o
instrumento que lhes permita conhecer os homens e compreendê-los em
seus milhares de particularidades, rudes ou requintadas. Pois desses
mesmos homens flui o que há de mais terrível, ordinário e perigoso
em tudo o que acontece. Não há outra esperança de que a algo tão
falso, simplesmente porque lhe é mais cômodo?”.
Ocorre
que eu previra algo de terrível — entenda-se para o mundo — que,
posteriormente, se confirmou com exatidão. Não tinha nada de melhor
a fazer do que anotá-lo. Com isso, podia provar que já o havia
antevisto muito tempo antes que acontecesse. Provavelmente pretendia
com isso conferir-me o direito a futuras predições. Transcrevo aqui
a resposta aniquiladora de meu interlocutor a essa minha pretensão;
ela é mais importante que a deplorável vaidade da predição
confirmada:
Aquele
que adverte, o profeta, cujas predições se confirmam, é uma pessoa
respeitada sem razão. Ele tornou as coisas fáceis demais para ele,
deixando-se dominar pelos horrores que abomina, antes mesmo que estes
se tornassem reais. Ele acredita que está advertindo; mas, comparada
ao sofrimento que previu, sua advertência é sem valor. Ele será
admirado por sua previsão, mas nada mais fácil. Quanto mais
monstruosa sua previsão, tanto mais cedo ela se tornará verdade.
Admirado deveria ser o profeta que prediz algo de bom. Pois
isso, e tão somente isso, é que é improvável.
Elias
Canetti, in A consciência das palavras
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