segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Leitura

A leitura deu-me uma desculpa para a privacidade, ou talvez tenha dado um sentido à privacidade que me foi imposta, uma vez que durante a infância, depois que voltamos para a Argentina, em 1955, vivi separado do resto da família, cuidado por uma babá numa seção separada da casa. Então, meu lugar favorito de leitura era o chão do meu quarto, deitado de barriga para baixo, pés enganchados sob uma cadeira. Depois, tarde da noite, minha cama tornou-se o lugar mais seguro e resguardado para ler naquela região nebulosa entre a vigília e o sono. Não me lembro de jamais ter me sentido sozinho. Na verdade, nas raras ocasiões em que encontrava outras crianças, achava suas brincadeiras e conversas menos interessantes do que as aventuras e diálogos que lia em meus livros, O psicólogo James Hil Man afirma que a pessoa que leu histórias ou para quem leram histórias na infância “está em melhores condições e tem um prognóstico melhor do que primeiras leituras tornam-se algo vivido e por meio do qual se vive, um modo que a alma tem de se encontrar na vida”? A essas leituras, e por esse motivo, voltei repetidamente, e ainda volto.
Como meu pai era diplomata, viajávamos muito. Os livros davam-me um lar permanente, e um lar que eu podia habitar exatamente como queria, a qualquer momento, por mais estranho que fosse o quarto em que tivesse de dormir ou por mais ininteligíveis que fossem as vozes do lado de fora da minha porta. Muitas vezes, à noite, eu acendia a lâmpada de cabeceira e, enquanto a babá trabalhava em sua máquina de costura elétrica ou dormia roncando na cama ao lado, tentava chegar ao fim do livro que estava lendo e, ao mesmo tempo, retardar o fim o mais possível, voltando algumas páginas, procurando um trecho de que gostara, verificando detalhes que achava terem me escapado.
Alberto Manguel, in História da leitura

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