sábado, 1 de outubro de 2016

Decidir entre as possibilidades

A vida, que é, antes de tudo, o que podemos ser, vida possível, é também, e por isso mesmo, decidir entre as possibilidades o que em efeito vamos ser. Circunstâncias e decisão são os dois elementos radicais de que se compõe a vida. A circunstância — as possibilidades — é o que de nossa vida nos é dado e imposto. Isso constitui o que chamamos o mundo. A vida não elege seu mundo, mas viver é encontrar-se, imediatamente, em um mundo determinado e insubstituível: neste de agora. Nosso mundo é a dimensão de fatalidade que integra nossa vida. Mas esta fatalidade vital não se parece à mecânica. Não somos arremessados para a existência como a bala de um fuzil, cuja trajetória está absolutamente predeterminada. A fatalidade em que caímos ao cair neste mundo — o mundo é sempre este, este de agora — consiste em todo o contrário. Em vez de impor-nos uma trajetória, impõe-nos várias e, consequentemente, nos força... a eleger. Surpreendente condição a de nossa vida! Viver é sentir-se fatalmente forçado a exercitar a liberdade, a decidir o que vamos ser neste mundo. Nem um só instante se deixa descansar nossa atividade de decisão. Inclusive quando desesperados nos abandonamos ao que queira vir, decidimos não decidir.
É, pois, falso dizer que na vida “decidem as circunstâncias”. Pelo contrário: as circunstâncias são o dilema, sempre novo, ante o qual temos de nos decidir. Mas quem decide é o nosso caráter.
Tudo isto vale também para a vida coletiva. Também nela há, primeiro, um horizonte de possibilidades, e, depois, uma resolução que elege e decide o modo efetivo da existência coletiva. Esta resolução emana do caráter que a sociedade tenha, ou, o que é o mesmo, do tipo de homem dominante nela. Em nosso tempo, domina o homem-massa; é ele quem decide. Não se diga que isto era o que acontecia já na época da democracia, do sufrágio universal. No sufrágio universal não decidem as massas, senão que seu papel consistiu em aderir à decisão de uma ou outra minoria. Estas apresentavam seus “programas” — excelente vocábulo. Os programas eram, com efeito, programas de vida coletiva. Neles convidava-se a massa a aceitar um projeto de decisão.
Hoje acontece uma coisa muito diferente. Se se observa a vida pública dos países onde o triunfo das massas avançou mais — são os países mediterrâneos —, surpreende notar que neles se vive politicamente ao dia. O fenômeno é sobremaneira estranho. O Poder público acha-se em mãos de um representante de massas. Estas são tão poderosas, que aniquilaram toda possível oposição. São donas do Poder público em forma tão incontrastável e superlativa, que seria difícil encontrar na história situações de governo tão prepotentes como estas. E, entretanto, o Poder público, o Governo, vive ao dia; não se apresenta como um porvir franco, não significa um anúncio claro de futuro, não aparece como começo de algo cujo desenvolvimento ou evolução seja imaginável. Em suma, vive sem programa de vida, sem projeto. Não sabe aonde vai porque, a rigor, não vai, não tem caminho prefixado, trajetória antecipada. Quando esse poder público tenta justificar-se, não alude para nada ao futuro, senão, pelo contrário, fecha-se no presente e diz com perfeita sinceridade: “Sou um modo anormal de governo que é imposto pelas circunstâncias”. Quer dizer, pela urgência do presente, não por cálculos do futuro. Daí que sua atuação se reduza a evitar o conflito de cada hora; não a resolvê-lo, mas a escapar dele imediatamente, empregando os meios que sejam, ainda à custa de acumular com seu emprego maiores conflitos sobre a hora próxima. Assim tem sido sempre o Poder público quando o exerceram diretamente as massas: onipotente e efêmero. O homem-massa é o homem cuja vida carece de projeto e caminha ao acaso. Por isso não constrói nada, ainda que suas possibilidades, seus poderes, sejam enormes.
E este tipo de homem decide em nosso tempo.
Ortega y Gasset, in A Rebelião das Massas

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