Vivia
em ilha ventada, onde mais ninguém. Chamava se Bartolominha, era
minha avó favorita. O lugar dela era mais arejado que o céu,
exposto ao longe e ao esquecer. Seu marido, Bastante António, sempre
fora o faroleiro. Exercia aquelas luzes, noite adentro, sem que
nenhuma vez tenha faltado no seu alto posto. Mesmo sem salário
durante consecutivos anos, ele se manteve em fiel atividade.
Esqueceram se dele ali, os dos serviços centrais, lá onde o
dinheiro brilha e a gente apodrece. Impassível, sem se queixumar, o
avô Bastante se impunha a si mesmo, infalível, nessa missão de
iluminar as grandes rochas da costa. Nunca por seu lapso barco algum
desfaleceu de encontro à rebentação.
De
pouco lhe valeu tanta diligência: Bastante António morreu quando
subia a enorme escada em caracol. Seu corpo subia mais rápido que o
coração. Num segundo, essa intermitente luz de dentro deixou de lhe
iluminar o peito. A notícia chegou nos anos depois quando um
ocasional barco passou por nossa cidade.
A
família, de pronto, se fez ao mar. Havia que resgatar Bartolominha.
A avó não podia ficar assim sem amparo naquela tão distante
solidão. Acompanhei os restantes nessa missão de recuperar nossa
idosa parente. Muito quem chorava era minha mãe, sua dileta filha.
Durante a viagem de barco ela se inconsolava: quem sabe a avó,
entretanto, já desistira de viver e não tinha tido quem a
enterrasse?
Desembarcámos
com o peito enrodilhado, olhando a medo os recantos do sítio.
Suspiramos alto quando Bartolominha veio às rochas, envolta em sua
capulana, a mesma que eu nela sempre recordava. Quando lhe falamos em
sair dali, ela se contrafez. Minai, viéramos buscá-la? Pois que
fôssemos na mesma via de regresso, que ela dali não arredava.
Argumentou meu pai que ela não podia viver isolada de tudo, em lugar
tão despertencido de gente. Falou meu tio que ali não chegava nem
desembarcava notícia. Minha mãe acrescentou muitas lágrimas, com
alma entalada na garganta.
Bartolominha
respondeu, sem palavra, apontando a campa junto ao farol. Depois, se
afastou e ficou de costas olhando o mar. Era como se, em silêncio,
nos convocasse. Alinhamos com ela, perfilados frente ao oceano. Que
queria ela dizer, assim muda e queda? Usava o oceano como argumento?
Meu tio ainda insistiu:
—Quem
lhe arranja sustento?
Nos
mostrou, então, o pelicano. Era um bicho que ela criara desde
pequenino. A ave se afeiçoara, mais doméstica que um familiar. A
pontos de ir e vir e, todos os dias, lhe trazer peixe para ela se
refeiçoar.
—Tenho
que ficar aqui, regar o farol. Foi o meu Bastante que me pediu para
eu não deixar emagracer este farol.
Regressamos
sem a conseguir demover. Eu fiquei com o pensamento roendo me o sono.
Durante noites fui roubado ao descanso. Podia eu deixar o assunto
assim? Não, eu não podia desistir.
E
voltei a visitar a ilha. Demorei me ali uns tantos dias. Juntei
argumento, aliciei convite. A avó que viesse que eu lhe daria
guarida e aconchego em minha nova casa. Mas nada. O mesmo sorriso
desdenhoso lhe vinha aos lábios. Depois lhe sugeri que viesse comigo
viajar por terras lindas.
—Só
quero viajar quando for completamente cega.
Estranhei.
Nem respondi, esperando que mais se explicasse. E sim, ela continuou:
—É
que eu vivi tudo tão bonito que só quero visitar lugares que já
estejam dentro mim.
Arrumei
a vontade. A velha senhora tinha raízes fundas. Em desfecho de
conversa, eu lhe disse que, quando fosse, no dia seguinte, deixaria
um barco amarrado nas árvores da praia. Para o que desse. Ela
encolheu os ombros, enjeitando de vez a minha teimosia.
Nessa
noite, jantamos em silêncio sob o peso de uma não dita despedida.
Bartolominha proclamou o seu cansaço e anunciou que se ia retirar
para seu quarto. Fizera do farol o seu aposento. Ela subiu os
primeiros degraus e, antes de desaparecer no escuro, chamou o
pelicano. Deitava se com o bicho. Dormiam, inclusive, na mesma cama.
Ele lhe estendia as asas e ela adormecia abraçada ao passarão.
Dizia que assim seu corpo aprenderia a arte de voar.
—Uma
dessas tardes vou com ele, por esses aforas.
Deitei
me olhando as estrelas como buracos no fundo preto de um tecto. Me
deixei adormecer mas logo fui despertado por um estranho pesadelo. Na
realidade, eu não sonhava com nada. Nem mesmo entendia o porquê
desse meu impulso ao erguer me da esteira. Era como se eu fosse
guiado por vozes, escuro adentro. Me dirigi à campa e raspei as
areias com os pés. Descobri então que o buraco era raso: a
sepultura não tinha fundura nenhuma. Quando me debrucei sobre os
restos vi os ossos que se esfarelavam. Eram ossos de pássaro. E um
muito volumoso bico.
O
meu coração bateu, desordenado. Subi as escadas, tão veloz que as
tonturas quase me roubaram do mundo. Não cheguei a tempo. Junto ao
patamar do farol ainda toquei uma pena branca, esvoadiça. Fiquei na
varanda com o vento me vestindo a alma. Num certo momento, ainda
pensei vislumbrar Bartolominha revoando como se dançasse na fugaz
intermitência do farol. Desde essa noite sou eu o faroleiro da ilha
do avô Bastante. E aceno quando passam as grandes aves.
Mia
Couto, in Na berma de nenhuma estrada
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