— Vão
saltar, já vos mostro.
Os
dedos zelosos de Zacaria comprimiam os músculos da perna de encontro
ao osso. Subitamente, da carne saltavam pedaços de metal que
tombavam e rodopiavam pelo chão.
— São
balas — proclamava Zacaria Kalash com orgulho.
Na
ponta dos dedos erguia-as uma por uma e anunciava o calibre e as
circunstâncias em que tinha sido alvejado. Cada uma das quatro balas
tinha a sua própria proveniência.
— Esta,
a da perna, ganhei na Guerra Colonial. A da coxa veio da guerra com
Ian Smith. Esta, no braço, é desta guerra de agora...
— E
a outra?
— Que
outra?
— Essa
no ombro.
— Essa
já não me lembro.
—
Mentira, Zacaria. Conta lá.
— Estou
a falar a sério. Mesma das outras eu nem sempre lembro bem.
Limpava
os projéteis na manga da camisa e voltava a introduzi-los na carne,
usando os dedos como se empurrasse o êmbolo de uma seringa.
— Sabe
por que nunca me separo das minhas balas?
Sabíamos.
Mas fazíamos de conta que escutávamos pela primeira vez. Como ao
ditado que ele mesmo inventara e que rezava: queres conhecer um
homem, espreita-lhe as cicatrizes.
— Estes
são os avessos dos meus umbigos. Por aqui — e
apontava os buracos — por aqui se escapou a morte.
— Deixe
as balas, Zaca, nós queremos saber de outras coisas.
— Que
outras coisas? Eu só tenho sabedorias de bicho: pressinto mortes e
sangues.
Depois
da convalescença de meu irmão, Silvestre Vitalício acreditou que
mudanças radicais deveriam ocorrer em Jesusalém. E decidiu: eu e
Ntunzi fomos, por um tempo, viver com Zacaria Kalash. Para
desnuvearmos os espíritos e, ao mesmo tempo, aprendermos os enigmas
da vivência e os segredos da sobrevivência. Se Zacaria nos
faltasse, nós o substituiríamos nas vitais atividades da caça.
—
Faça-os chafurdar na lama —
ordenara meu velho.
Era
suposto percorrermos os atalhos bravios, iniciarmo-nos nas artes de
farejar e perseguir os bichos, dominarmos as secretas linguagens das
árvores. Todavia, Zacaria esquivava-se a ser nosso mestre. O que ele
queria era contar histórias de caça, falar sem conversar,
escutar-se a si mesmo para deixar de ouvir os seus fantasmas. Mas nós
reclamávamos por outros motivos de conversação.
—
Fale-nos do nosso passado.
— Minha
vida é casa de toupeira: quatro buracos, quatro almas. Que conversa
vocês querem?
— Da
nossa mãe, dos namoros dela com o pai.
— Isso
não, isso nunca.
A
reação de Zacaria nos pareceu excessiva. O homem berrou, com as
mãos cruzadas à frente do peito e repetindo sem parar:
— Isso
não.
Neto
de soldado, filho de sargento, ele mesmo não tendo sido outra coisa
senão um militar. Não lhe viessem com tretas de coração, amores e
saudadezinhas. Homem é bicho morredouro, que adora a Vida mas gosta
mais ainda de não deixar viver.
— Você
ainda se sente um militar. Confesse, Zaca, tem saudade de quartel?
O
homem acariciava o jaquetão militar que sempre envergava. Os dedos
ganhavam sono sobre o cano da espingarda. Só depois ele falava: não
é a farda que compõe o militar. É a jura. Que ele não era
daqueles que, por medo da Vida, se alistam em exército. Ser militar
foi, como dizia ele, decorrência da corrente. Na sua língua materna
nem havia palavra para dizer soldado. Dizia-se “massodja”, termo
roubado ao inglês.
— Nunca
tive causas, a minha bandeira sempre fui eu mesmo.
— Mas,
Zaca, você não se lembra de nossa mãe?
— Não
gosto de antiguar os tempos. Minha cabeça é de curto alcance.
Ernestinho
Sobra, agora renomeado Zacaria Kalash, atravessara mortes e
tiroteios. Escapara de tiros, escapara de toda a recordação. Pelas
perfurações do corpo lhe tinham fugido as lembranças.
— Nunca
fui bom de lembrar, sou assim de nascença.
O
Tio Aproximado foi quem desvendou esse esquecimento: por que motivo
Zacaria não se lembrava de nenhuma guerra? Porque ele lutara sempre
do lado errado. Foi assim desde sempre na sua família: o avô lutara
contra Gungunhana, o pai se alistara na polícia colonial e ele mesmo
combatera pelos portugueses na luta de libertação nacional.
Para
o Tio Aproximado, nosso parente visitante, aquela amnésia não
merecia senão desprezo. Um militar sem lembrança de guerra é como
prostituta que se diz virgem. Era isso que Aproximado, sem panos
mornos, atirava à cara de Zacaria.
Porém,
o militar fazia ouvidos de mercador e jamais ripostava. Com angelical
sorriso, desviava a conversa para o vazio de assunto onde se sentia à
vontade:
— Às
vezes pergunto: quantas balas haverá neste mundo?
— Zaca,
ninguém quer saber disso...
— Será
que, na guerra, houve mais balas que pessoas?
— Isso
não sei — respondia Ntunzi. — Hoje em dia, com certeza
que há: bastam seis balas para exterminar a humanidade. Você tem
seis balas?
Mia
Couto, in Antes
de nascer o mundo
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