domingo, 18 de setembro de 2016

Zacaria Kalash, o militar (trecho)

Vão saltar, já vos mostro.
Os dedos zelosos de Zacaria comprimiam os músculos da perna de encontro ao osso. Subitamente, da carne saltavam pedaços de metal que tombavam e rodopiavam pelo chão.
São balas — proclamava Zacaria Kalash com orgulho.
Na ponta dos dedos erguia-as uma por uma e anunciava o calibre e as circunstâncias em que tinha sido alvejado. Cada uma das quatro balas tinha a sua própria proveniência.
Esta, a da perna, ganhei na Guerra Colonial. A da coxa veio da guerra com Ian Smith. Esta, no braço, é desta guerra de agora...
E a outra?
Que outra?
Essa no ombro.
Essa já não me lembro.
Mentira, Zacaria. Conta lá.
Estou a falar a sério. Mesma das outras eu nem sempre lembro bem.
Limpava os projéteis na manga da camisa e voltava a introduzi-los na carne, usando os dedos como se empurrasse o êmbolo de uma seringa.
Sabe por que nunca me separo das minhas balas?
Sabíamos. Mas fazíamos de conta que escutávamos pela primeira vez. Como ao ditado que ele mesmo inventara e que rezava: queres conhecer um homem, espreita-lhe as cicatrizes.
Estes são os avessos dos meus umbigos. Por aqui — e apontava os buracos — por aqui se escapou a morte.
Deixe as balas, Zaca, nós queremos saber de outras coisas.
Que outras coisas? Eu só tenho sabedorias de bicho: pressinto mortes e sangues.
Depois da convalescença de meu irmão, Silvestre Vitalício acreditou que mudanças radicais deveriam ocorrer em Jesusalém. E decidiu: eu e Ntunzi fomos, por um tempo, viver com Zacaria Kalash. Para desnuvearmos os espíritos e, ao mesmo tempo, aprendermos os enigmas da vivência e os segredos da sobrevivência. Se Zacaria nos faltasse, nós o substituiríamos nas vitais atividades da caça.
Faça-os chafurdar na lama — ordenara meu velho.
Era suposto percorrermos os atalhos bravios, iniciarmo-nos nas artes de farejar e perseguir os bichos, dominarmos as secretas linguagens das árvores. Todavia, Zacaria esquivava-se a ser nosso mestre. O que ele queria era contar histórias de caça, falar sem conversar, escutar-se a si mesmo para deixar de ouvir os seus fantasmas. Mas nós reclamávamos por outros motivos de conversação.
Fale-nos do nosso passado.
Minha vida é casa de toupeira: quatro buracos, quatro almas. Que conversa vocês querem?
Da nossa mãe, dos namoros dela com o pai.
Isso não, isso nunca.
A reação de Zacaria nos pareceu excessiva. O homem berrou, com as mãos cruzadas à frente do peito e repetindo sem parar:
Isso não.
Neto de soldado, filho de sargento, ele mesmo não tendo sido outra coisa senão um militar. Não lhe viessem com tretas de coração, amores e saudadezinhas. Homem é bicho morredouro, que adora a Vida mas gosta mais ainda de não deixar viver.
Você ainda se sente um militar. Confesse, Zaca, tem saudade de quartel?
O homem acariciava o jaquetão militar que sempre envergava. Os dedos ganhavam sono sobre o cano da espingarda. Só depois ele falava: não é a farda que compõe o militar. É a jura. Que ele não era daqueles que, por medo da Vida, se alistam em exército. Ser militar foi, como dizia ele, decorrência da corrente. Na sua língua materna nem havia palavra para dizer soldado. Dizia-se “massodja”, termo roubado ao inglês.
Nunca tive causas, a minha bandeira sempre fui eu mesmo.
Mas, Zaca, você não se lembra de nossa mãe?
Não gosto de antiguar os tempos. Minha cabeça é de curto alcance.
Ernestinho Sobra, agora renomeado Zacaria Kalash, atravessara mortes e tiroteios. Escapara de tiros, escapara de toda a recordação. Pelas perfurações do corpo lhe tinham fugido as lembranças.
Nunca fui bom de lembrar, sou assim de nascença.
O Tio Aproximado foi quem desvendou esse esquecimento: por que motivo Zacaria não se lembrava de nenhuma guerra? Porque ele lutara sempre do lado errado. Foi assim desde sempre na sua família: o avô lutara contra Gungunhana, o pai se alistara na polícia colonial e ele mesmo combatera pelos portugueses na luta de libertação nacional.
Para o Tio Aproximado, nosso parente visitante, aquela amnésia não merecia senão desprezo. Um militar sem lembrança de guerra é como prostituta que se diz virgem. Era isso que Aproximado, sem panos mornos, atirava à cara de Zacaria.
Porém, o militar fazia ouvidos de mercador e jamais ripostava. Com angelical sorriso, desviava a conversa para o vazio de assunto onde se sentia à vontade:
Às vezes pergunto: quantas balas haverá neste mundo?
Zaca, ninguém quer saber disso...
Será que, na guerra, houve mais balas que pessoas?
Isso não sei — respondia Ntunzi. — Hoje em dia, com certeza que há: bastam seis balas para exterminar a humanidade. Você tem seis balas?
Mia Couto, in Antes de nascer o mundo

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