Não
choro por nada que a vida traga ou leve. Há porém páginas de prosa
que me têm feito chorar. Lembro-me, como do que estou vendo, da
noite em que, ainda criança, li pela primeira vez numa seleta o
passo célebre de Vieira sobre o rei Salomão. “Fabricou Salomão
um palácio...” E fui lendo, até ao fim, trêmulo, confuso: depois
rompi em lágrimas, felizes, como nenhuma felicidade real me fará
chorar, como nenhuma tristeza da vida me fará imitar. Aquele
movimento hierático da nossa clara língua majestosa, aquele
exprimir das ideias nas palavras inevitáveis, correr de água porque
há declive, aquele assombro vocálico em que os sons são cores
ideais - tudo isso me toldou de instinto como uma grande emoção
política. E, disse, chorei: hoje, relembrando, ainda choro. Não é
- não - a saudade da infância de que não tenho saudades: é a
saudade da emoção daquele momento, a mágoa de não poder já ler
pela primeira vez aquela grande certeza sinfônica.
Bernardo
Soares (heterônimo de Fernando Pessoa), in
Livro do Desassossego
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