Certas
palavras nos dão a impressão de que voam, ao saírem da boca.
“Sílfide”,
por exemplo. É dizer “Sílfide” e ficar vendo suas evoluções
no ar, como as de uma borboleta. Não tem nada a ver com o que a
palavra significa.
“Sílfide”,
eu sei, é o feminino de “silfo”, o espírito do ar, e quer mesmo
dizer uma coisa diáfana, leve, borboleteante. Mas experimente dizer
“silfo”. Não voou, certo? Ao contrário da sua mulher, “silfo”
não voa. Tem o alcance máximo de uma cuspida. “Silfo”, zupt,
plof. A própria palavra “borboleta” não voa, ou voa mal. Bate
as asas, tenta se manter aérea mas choca-se contra a parede. Sempre
achei que a palavra mais bonita da língua portuguesa é
“sobrancelha”. Esta não voa mas paira no ar, como a neblina das
manhãs até ser desmanchada pelo sol. já a terrível palavra
“seborréia” escorre pelos cantos da boca e pinga no tapete.
“Trilhão”
era uma palavra pouco usada, antigamente. Uma pessoa podia nascer e
morrer sem jamais ouvir a palavra “trilhão”, ou só ouvi-la em
vagas especulações sobre as estrelas do Universo. O "trilhão"
ficava um pouco antes do infinito. Dizia-se “trilhão” em vez de
dizer “incalculável” ou “sei lá”. Certa vez (autobiografia)
tive de responder a uma questão de Geografia no colégio. Naquele
tempo a pior coisa do mundo era ser chamado a responder qualquer
coisa no colégio. De pé, na frente dos outros e - o pior de tudo -
em voz alta.
Depois
descobri que existem coisas piores, como a miséria, a morte e a
comida inglesa. Mas naquela época o pior era aquilo. “Senhor
Verissimo!” Era eu. Era irremediavelmente eu. “Responda, qual e a
população da China?”
Eu
não sabia. Estava de pé, na frente dos outros, e tinha que dizer em
voz alta o que não sabia. Qual era a população da China? Com
alguma presença de espírito eu poderia dizer: “A senhora quer
dizer neste exato momento?”, dando a entender que, como o que mais
acontece na China é nascer gente, uma resposta exata seria
impossível. Mas meu espírito não estava ali. Meu espírito ainda
estava em casa, dormindo. “Então, senhor Verissimo, qual é a
população da China?” E eu respondi:
-
Numerosa.
Ganhei
zero, claro. Mas “trilhão”, entende, era sinônimo de
“numeroso”. Não era um número, era uma generalização. Você
dizia “trilhão” e a palavra subia como um balão desamarrado,
não dava tempo nem para ver a sua cor. E hoje não passa dia em que
não se ouve falar em trilhões. O “trilhão” vai, aos poucos, se
tornando nosso íntimo. É o mais novo personagem da nossa aflição.
Quantos zeros tem um trilhão? Doze, acertei? Se os zeros fossem
pneus, o trilhão seria uma jamanta daquelas de carregar gerador para
usina atômica parada. Felizmente vem aí uma reforma e outra moeda,
com menos zeros e mais respeito. Senão chegaríamos à
desmoralização completa.
-
E o troco do meu tri? - Serve uma bala?
Desconfio
que o que apressará a reforma é a iminência do quatrilhão.
“Quatrilhão” é pior que “seborréia”. Depois de dizer
“quatrilhão” você tem que pular para trás, senão ele esmaga
os seus pés. E “quatrilhão” não é como, por exemplo,
“otorrino”, que cai no chão e corre para um canto.
“Quatrilhão”
cai, pesadamente, no chão e fica. Você tenta juntar a palavra do
chão e ela quebra. Tenta remontá-la – fica “trãofiqua” e
sobra o agá. A mente humana, ou pelo menos a mente brasileira, não
está preparada para o “quatrilhão”. As futuras gerações
precisam ser protegidas do “quatrilhão”. As reformas monetárias,
quando vêm, são sempre para acomodar as máquinas calculadoras e o
nosso senso do ridículo, já que caem os zeros mas nada, realmente,
muda. A próxima reforma seria a primeira motivada, também, por um
pudor linguístico. No momento em que o “quatrilhão” se
instalasse no nosso vocabulário cotidiano, mesmo que fosse só para
descrever a dívida interna, alguma coisa se romperia na alma
brasileira. Seria o caos.
E
“caos”, você sabe. É uma palavra chicle-balão. Pode explodir
na nossa cara.
Luís
Fernando Veríssimo, in Comédias para se ler na escola
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