José
Buchmann apareceu esta noite na companhia de um velho de longas
barbas brancas, uma trunfa grisalha, que lhe caía pelos ombros em
tranças selvagens. Reconheci nele, imediatamente, o mendigo que o
fotógrafo perseguira, semanas a fio, mostrando-o, numa imagem
extraordinária, a emergir de uma sarjeta. Um deus antigo, vingador,
de cabeleira em desordem e bruscos olhos acesos.
– Quero
apresentar-lhe o meu amigo Edmundo Barata dos Reis, ex-agente do
Ministério da Segurança do Estado.
–
Ex-gente!, diga antes, ex-gente!
Ex-cidadão exemplar. Expoente dos excluídos, excremento
existencial, excrescência exígua e explosiva. Em duas palavras:
vadio profissional. Muito prazer...
Félix
Ventura estendeu-lhe a ponta dos dedos. Perplexo, enojado. Edmundo
Barata dos Reis prendeu-lhe a mão entre as dele, firmemente,
longamente, olhando-o de lado (como um pássaro) e todavia atento,
trocista, saboreando o desconforto do outro. José Buchmann, vestido
com um belo casaco de bombazina cor de mel, os braços cruzados sobre
o peito, parecia igualmente divertido. Os olhos pequenos e redondos
luziam na penumbra da sala como contas de vidro:
– Achei
que gostasse de o conhecer. A vida deste homem parece inventada por
si...
–
Desculpe?
–
Sou-Todo-Ouvidos. Era assim que me
chamavam. Meu nome de guerra. Eu gostava. Gostava de ouvir. E então,
zás!, caiu-nos em cima o muro de Berlim. Pópilas, paizinho! Num dia
agente, no outro ex-gente. Félix Ventura estremeceu:
– Você
foi aluno do professor Gaspar?
Edmundo
Barata dos Reis sorriu surpreso:
– Oh!
sim, sim. O camarada também?
Os
dois homens abraçaram-se numa alegria sincera. Trocaram memórias.
Barata dos Reis, mais velho um bom par de anos do que Félix Ventura,
frequentara as aulas do professor Gaspar numa época em que no Liceu
Salvador Correia os estudantes negros se contavam pelos dedos de uma
mão. Terminado o liceu empregou-se nos serviços de meteorologia.
Preso em sessenta e poucos, acusado de tentar estabelecer em Luanda
uma rede bombista, passou sete anos no campo de concentração do
Tarrafal, em Cabo Verde. “Um galinheiro”, resumiu: “mas a praia
era boa.” Poucas semanas após a independência já o conheciam,
amigos e inimigos, e sempre foram mais estes do que aqueles, como o
senhor Sou-Todo-Ouvidos. Dois anos em Havana, nove meses em Berlim
(Leste), outros seis em Moscou, e assim, temperado o aço, retornou à
trincheira firme do socialismo em África.
– Um
comunista! Acredita? Sou o último comunista a sul do equador...
Aquela
teimosia é que o perdeu. Transformou-se em poucos meses num estorvo
ideológico. Um tipo incômodo. Não tinha vergonha de gritar –
“sou comunista!”, numa altura em que os seus chefes já só
murmuravam, baixinho, “fui comunista”, e continuou a bradar, “sou
comunista, sim, sou muito marxista-leninista!”, mesmo depois que a
versão oficial passou a negar o passado socialista do país.
– Vi
coisas, meu pai!
José
Buchmann sentara-se, de perna traçada, no grande cadeirão de verga
que o bisavô de Félix Ventura trouxe do Brasil. Afundou a mão
direita no bolso interior do casaco, tirou uma cigarreira de prata,
abriu-a, separou lentamente o tabaco e enrolou um cigarro. Um sorriso
malicioso iluminou-lhe o rosto:
–
Conta-lhe o que me contaste a mim,
Edmundo, a história do Presidente...
Edmundo
Barata dos Reis olhou-o num silêncio grave, indignado, repuxando com
violência os fios da barba. Pensei por instantes que se fosse
levantar. Receei vê-lo sair. José Buchmann encolheu os ombros:
– Podes
falar, caramba!, não há maca. Aqui o Félix é um tipo fixe. É da
família. Aliás, vocês foram ambos alunos desse famoso professor
Gaspar, não foram?, isso já quer dizer alguma coisa. Disse-me o
Félix que é como pertencer à mesma tribo...
–
Substituíram o Presidente por um duplo.
– Edmundo Barata dos Reis disse isto de um jacto e depois calou-se.
Os olhos dele voltejaram pela sala numa aflição. Parecia um pardal
à procura de uma janela aberta, uma luz, um pedacinho de céu por
onde escapar. Baixou a voz: – Substituíram o velho. Puseram um
sósia no lugar dele, um espantalho, sei lá como dizer, a porra de
uma réplica.
–
Foda-se! – Félix explodiu numa
gargalhada.
Eu
nunca o ouvira dizer obscenidades. Também nunca o ouvira rir assim,
com tamanha violência. José Buchmann assustou-se. Depois imitou-o.
Riram os dois. Rimo-nos os três. Uma gargalhada puxando a outra. Por
fim Félix sossegou.
– Temos
então um presidente de fantasia –, disse, enxugando as lágrimas
com um lenço. – Isso eu já suspeitava. Temos um governo de
fantasia. Um sistema judicial de fantasia. Temos, em resumo, um país
de fantasia. Mas conte-me – quem substituiu o presidente?
Edmundo
Barata dos Reis encolhera-se na cadeira. Já não lembrava um deus,
muito menos um deus guerreiro, parecia-se mais com um cachorro
humilhado. Fedia. Um cheiro a urina, a folhas e a frutos em
decomposição. Ergueu-se, e, em vez de responder ao albino,
voltou-se contra José Buchmann, o dedo estendido:
– Essa
gargalhada... Estou a olhar para essa gargalhada, paizinho, e estou a
ver outra pessoa, há muito, muito tempo. No outro tempo. No tempo
antigo. Não nos conhecemos já?
– Não
creio. – O fotógrafo ficou tenso. – Eu sou da Chibia. Você é
da Chibia?
– O
que é isso, paizinho?! Eu sou luandense puro...
– Então
não pode ser.
– Sim
–, confirmou Félix Ventura: – o Buchmann veio lá das
províncias, do sul profundo. É matuense...
–
Matuense? O nosso mato parece um jardim.
Já os vossos jardins, aqui em Luanda, os poucos que existem, parecem
é mato.
–
Calma. Abaixo o tribalismo. Abaixo o
regionalismo. Viva o poder popular – não era assim que se dizia
antes? O que eu queria é que aqui o camarada Edmundo respondesse à
minha pergunta. Afinal, quem substituiu o presidente por um duplo?
Edmundo
Barata dos Reis suspirou profundamente:
– Os
russos, eu acho. Talvez os israelitas. A máfia do armamento, a
Mossad, eu sei lá, as duas desgraças juntas.
– Pode
ser. Faz sentido. E como é que você descobriu o golpe?
– Eu
conheço o duplo. Contratei-o! Contratei outros também. O velho
nunca aparecia em público. Eram os duplos dele quem apareciam.
Aquele, o Três, foi sempre o melhor. O único que podia falar sem
levantar suspeitas, os outros ficavam em silêncio, só os
utilizávamos em cerimônias de corpo presente. O Três era um caso
especial, um talento raro, um verdadeiro ator, assisti à formação
dele. Levou-nos cinco meses. Aprendeu rápido. Como se mover, como se
dirigir às pessoas, o tom de voz, o protocolo, a biografia do velho,
isso tudo. Ficou perfeito. Ou quase – o muadiê tinha um problema,
quero dizer, tem um problema, é canhoto. Até nisso se parece com a
imagem do presidente no espelho. Por isso eu o reconheci. Você não
percebeu que o presidente agora deu em canhoto? Não, não percebeu.
Ninguém percebeu.
–
Quando é que descobriu isso?
– Faz
um ano, ano e pouco.
– Você
ainda trabalhava para a segurança?
– Eu?!
Cota, estou a viver de vadio já tem mais de sete anos. Vê esta
camisa? Virou pele. É uma camisa do Partido Comunista da União das
Repúblicas Socialistas Soviéticas. Vesti-a no dia em que me
despediram e nunca mais a despi. Jurei que não a despia enquanto a
Rússia não voltasse a ser comunista. Agora, mesmo que queira já
não a consigo tirar. Virou pele, está a ver? Tenho a foice e o
martelo tatuados no peito. Isto já não sai.
Não
saía mesmo. Félix Ventura olhava para ele atordoado. José Buchmann
sorria como se dissesse, “e então – não é um caso?” Edmundo
Barata dos Reis reassumiu a postura de velho deus guerreiro. Sacudiu
as fortes tranças grisalhas, com violência, espalhando à sua volta
um terrível fedor.
–
Sopa?, perguntou. – Não tem sopa?
– É
louco! –, assegurou Félix depois que Edmundo Barata dos Reis saiu.
Repetiu isto uma e outra vez, firmemente. Não estava disposto a
perder mais tempo com o assunto. Todavia, José Buchmann insistiu:
–
Conheço coisas mais estranhas.
– Oiça,
o homem é completamente doido. Cacimbou. Você esteve muito tempo
fora, a viajar, não faz ideia daquilo por que passamos neste maldito
país. Luanda está cheia de pessoas que parecem muito lúcidas e de
repente desatam a falar línguas impossíveis, ou a chorar sem motivo
aparente, ou a rir, ou a praguejar. Algumas fazem tudo isso ao mesmo
tempo. Umas julgam que estão mortas. Outras estão mesmo mortas e
ainda ninguém teve coragem de as informar. Umas acreditam que podem
voar. Outras acreditam tanto nisso que realmente voam. É uma feira
de loucos, esta cidade, há por aí, por essas ruas em escombros, por
esses musseques em volta, patologias que ainda nem sequer estão
catalogadas. Não leve a sério tudo o que lhe dizem. Aliás, aceita
um conselho?, não leve ninguém a sério.
–
Talvez ele não seja realmente louco.
Talvez esteja a fazer-se de louco.
– Não
vejo a diferença. Um sujeito que escolheu viver na rua, dentro de
uma sarjeta, que acredita na reconversão da Rússia ao comunismo, e
que além do mais quer ser confundido com um louco – para mim é
louco.
–
Talvez seja. Talvez não. – José
Buchmann parecia desiludido: – Gostaria de o conhecer melhor.
José
Eduardo Agualusa, in O vendedor de passados
Nenhum comentário:
Postar um comentário