terça-feira, 13 de setembro de 2016

Crônicas da cidade, a partir da poltrona do barbeiro

Nenhuma brisa faz tilintar a bacia de latão pendurada em um arame, sobre o oco da porta, anunciando que aqui se fazem barbas, arrancam-se dentes e aplicam-se ventosas.
Por mero hábito, ou para sacudir-se da sonolência do verão, o barbeiro andaluz discursa e canta enquanto acaba de cobrir de espuma a cara de um cliente. Entre frases e bulícios, sussurra a navalha. Um olho do barbeiro vigia a navalha, que abre caminho no creme, e outro vigia os montevideanos que abrem caminho pela rua poeirenta. Mais afiada é a língua que a navalha, e não há quem se salve das esfoladuras. O cliente, prisioneiro do barbeiro enquanto dura a função, mudo, imóvel, escuta a crônica de costumes e acontecimentos e de vez em quando tenta seguir, com o rabo do olho, as vítimas fugazes.
Passa um par de bois, levando uma morta para o cemitério. Atrás da carreta, um monge desfia o rosário. À barbearia chegam os sons de algum sino que, por rotina, despede a defunta de terceira classe. A navalha pára no ar. O barbeiro faz o sinal-da-cruz e de sua boca saem palavras sem desolação:
Coitadinha. Nunca foi feliz.
O cadáver de Rosalia Villagrán está atravessando a cidade de Montevidéu, ocupada pelos inimigos de Artigas. Há muito que ela acreditava que era outra, e achava que vivia em outro tempo e em outro mundo, e no hospital de caridade beijava as paredes e discutia com as pombas. Rosalia Villagrán, esposa de Artigas, entrou na morte sem uma moeda que lhe pagasse o ataúde.
Eduardo Galeano, in Mulheres

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