sexta-feira, 26 de agosto de 2016

Você se lembra de Miguel Páramo?

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Durante a janta tomou seu chocolate como fazia todas as noites. Sentia-se tranquilo.
Escuta, Anita. Sabe quem foi enterrado hoje?
Não, tio.
Você se lembra de Miguel Páramo?
Lembro, tio.
Pois ele.
Ana baixou a cabeça.
Tem certeza que foi ele, não é?
Certeza, não, tio. Não vi a cara. Ele me agarrou de noite e na escuridão.
Então como é que soube que era Miguel Páramo?
Porque ele me disse: “Sou eu, Miguel Páramo, Ana. Não se assuste.” Foi o que ele me disse.
Mas você sabia que ele foi o autor da morte do seu pai, não sabia?
Sabia, tio.
E então, o que fez para afastá-lo?
Não fiz nada.
Os dois guardaram silêncio durante alguns instantes. Ouvia-se a brisa morna entre as folhas da goiabeira.
Ele disse que estava ali justamente para isso: me pedir desculpas, e para saber se eu o perdoaria. Sem me mexer da cama, fui logo avisando: “A janela está aberta.” E ele entrou. Chegou me abraçando, como se essa fosse a forma de se desculpar pelo que tinha feito. E eu sorri para ele. Pensei naquilo que o senhor tinha me ensinado: que não se deve odiar ninguém nunca. Sorri ao dizer isso para ele; mas depois achei que não conseguiu ver meu sorriso, porque eu não via ele, de tão negra que a noite estava. Só deu para sentir que ele estava em cima de mim e que começava a fazer maldades comigo.
Achei que ia me matar. Foi isso que eu achei, tio. E até deixei de pensar, só para morrer antes que ele me matasse. Mas com certeza ele não se atreveu.
Entendi isso quando abri os olhos e vi a luz da manhã que entrava pela janela aberta. Antes daquela hora, tinha sentido que havia deixado de existir.
Mas você deve ter alguma certeza. A voz. Não deu para reconhecer a voz?
Eu não conhecia ele de jeito nenhum, de voz e de nada. Só sabia que tinha matado meu pai. Nunca tinha visto e depois não cheguei a ver. Não tinha como, tio.
Mas você sabia quem ele era.
Sim. E que coisa ele era. Sei até que agorinha mesmo ele deve estar nas profundas do inferno; porque foi isso que eu pedi a todos os santos, e com todo o meu fervor.
Não acredite tanto, filha. Vai saber quanta gente está rezando por ele neste momento! Você está sozinha. Uma prece contra milhares de preces. E, entre essas preces, algumas muito mais profundas do que a sua, como deve ser a do pai dele.
Ia dizer a ela: “E além do mais, eu dei a ele a absolvição.” Mas só pensou. Não quis maltratar a alma meio quebrada daquela moça. Em vez disso tomou-a pelo braço e disse:
Vamos dar graças a Deus Nosso Senhor porque o levou desta terra onde causou tanto mal, e não importa que agora o tenha em seu céu.
Juan Rulfo, in Pedro Páramo

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