quinta-feira, 11 de agosto de 2016

(sonho nº 6)

À nossa frente erguia-se uma gaiola muito alta, larga e funda, de onde, a espaços, em rajadas vagas, irrompia um alegre piar de aves. Periquitos, bicos-de-lacre, viuvinhas, peitos-celestes, anduas, rolas, abelharucos. Estávamos sentados em cadeiras de plástico, muito gastas, sob a sombra perfumada de uma mangueira frondosa. À nossa esquerda corria um muro baixo, em adobe, pintado de branco. Mamoeiros altíssimos, carregados de mamões, requebravam-se, junto ao muro, num langor de mulatas. Olhando para a direita, na direcção da casa, alinhavam-se filas de laranjeiras, limoeiros, goiabeiras. Ainda mais adiante um enorme embondeiro dominava a horta. Parecia ter sido posto ali para me lembrar que aquilo era apenas um sonho. Pura ficção. Galinhas ciscavam em meio ao barro vermelho e ao capim muito verde, arrastando atrás ninhadas de pintos. José Buchmann abriu para mim um límpido sorriso de vitória.
Seja bem-vindo ao meu humilde sobrado.
Bateu as palmas e logo uma moça esguia, tímida, de vestidinho curto e sandálias de plástico nos pés ligeiros, emergiu da penumbra. Buchmann pediu-lhe que trouxesse uma cerveja gelada, para ele, para mim um sumo de pitanga. A rapariga baixou a cabeça, sem uma palavra, e desapareceu. Voltou pouco depois equilibrando num tabuleiro colorido uma garrafa de cerveja, dois copos e um jarro com o sumo. Provei o sumo, desconfiado. Era bom, acre e doce ao mesmo tempo, muito fresco, com um perfume capaz de iluminar a alma mais sombria.
Estamos na Chibia, mas isso já você sabe, não é verdade? Por muito que agradeça ao nosso comum amigo, ao nosso querido Félix, por me ter inventado este chão, nunca lhe agradecerei o suficiente.
Desculpe-me a curiosidade. Existe realmente uma campa, num cemitério aqui da região, com o nome de Mateus Buchmann?
Existe. Havia algumas campas destruídas, e entre elas, por que não?, a do meu pai. Mandei fazer a lápide. Você viu-a. Viu a fotografia, não viu?
Compreendo. E as aguarelas de Eva Miller?
Encontrei-as realmente num antiquário, na Cidade do Cabo, uma loja fabulosa, que vende de tudo um pouco, de joias a álbuns de fotografias, passando por velhas máquinas fotográficas. Eva Miller é um nome comum. Deve haver no mundo algumas dezenas de pintoras de aguarelas com esse nome. A breve notícia da morte dela, n’ O Século de Joanesburgo, essa sim, inventei-a eu, com a ajuda de um velho tipógrafo português, meu amigo. Eu precisava que o próprio Félix acreditasse na minha biografia. Se ele acreditasse nela toda a gente acreditaria. Hoje, sinceramente, até eu acredito. Olho para trás, para o meu passado, e vejo duas vidas. Numa fui Pedro Gouveia, noutra José Buchmann. Pedro Gouveia morreu. José Buchmann regressou à Chibia.
Você sabia que Ângela era a sua filha?
Sabia. Saí da cadeia em mil novecentos e oitenta. Estava destruído, completamente destruído – fisicamente, moralmente, psicologicamente. Edmundo foi comigo ao aeroporto, colocou-me num avião e enviou-me para Portugal. Ninguém esperava por mim. Já não me restava família lá, pelo menos conhecida, não me restava nada, a mínima ligação. A minha mãe morreu em Luanda, coitada, enquanto eu estava preso. O meu pai vivia no Rio de Janeiro, há anos, com uma outra mulher. Nunca tive muito contacto com ele. Eu nasci em Lisboa, sim, mas fui para Angola canuco, ainda nem sequer sabia falar. Portugal era o meu país, diziam-me, diziam-me isso na cadeia, os outros presos, os bófias, mas eu não me sentia português. Fiquei em Lisboa, dois ou três anos, a trabalhar num semanário como revisor. Foi nessa altura, em contacto com os fotógrafos do jornal, que me comecei a interessar pela fotografia. Tirei um curso rápido e parti para Paris. Dali fui para Berlim. Comecei a trabalhar como repórter fotográfico e durante anos, décadas, percorri o mundo, de guerra em guerra, tentando esquecer-me de mim. Ganhei muito dinheiro, muito dinheiro mesmo, mas não sabia o que fazer com ele. Nada me atraía. A minha vida era uma fuga. Uma tarde achei-me em Lisboa, um ponto no mapa entre dois pontos, um lugar de passagem. Num restaurante dos Restauradores, onde entrei atraído pelo cheiro aos miúdos de frango que a minha mãe fazia, reencontrei um velho camarada. Foi ele quem, pela primeira vez, me falou em Ângela. O filho da puta, o Edmundo, divertia-se a contar-me, sempre que me interrogava, como matou a minha mulher. Também me disse que tinham assassinado a bebê. Afinal, não a mataram. Torturaram-na à frente da mãe, você ouviu-o!, mas não a mataram. Entregaram-na à Marina, a irmã da Marta, e foi ela quem a criou. Criou-a como a uma filha. Quando soube disso fiquei muito transtornado. Tinham passado os anos e eu envelhecera. Queria conhecer a minha filha, queria estar com ela, mas faltava-me a coragem para lhe contar a verdade. Fiquei obcecado. Veio-me um ódio, um rancor selvagem contra aquela gente, contra o Edmundo. Queria matá-lo. Achei que se o matasse poderia olhar de frente a minha filha. Matando-o talvez eu renascesse. Regressei a Luanda sem saber muito bem o que fazer. Temia ser reconhecido. No hotel, numa mesa do bar, encontrei um cartão de visitas do nosso amigo Félix Ventura. “Dê aos seus filhos um passado melhor.” Muito bom papel. Muito bem impresso. Foi então que tive a ideia de o contratar. Com outra identidade seria mais fácil circular pela cidade sem atrair suspeitas. Podia matar Edmundo e desaparecer. Mas queria que ele soubesse porque ia morrer, queria confrontá-lo com os seus crimes, no fundo, reconheço, queria vingar-me. Foi difícil encontrá-lo e quando o encontrei descobri que enlouquecera. Pelo menos parecia louco. Fui com ele a casa de Félix porque precisava de ouvir a opinião de alguém. Félix achou que sim, que Edmundo estava louco, e nessa altura pensei em desistir. Não podia matar um louco. Uma tarde esperei que o tipo deixasse a sarjeta onde se costumava esconder e entrei. Ali, naquele buraco imundo, havia um colchão, roupa suja, revistas, literatura marxista, e, acredita?, uma série de arquivos com relatórios da segurança de estado sobre dezenas de pessoas. O meu processo era um dos primeiros. Estava eu ali, com uma lanterna numa das mãos, e o arquivo na outra, exaltado, confuso, quando o Edmundo apareceu de repente, tipo alma penada. Saltou da sarjeta lá para dentro e caiu a dois passos de mim. Segurava uma faca na mão. Ria-se. Meu Deus, o riso dele! disse-me: os dois de novo cara a cara, camarada Pedro Gouveia, desta vez acabo contigo – e atacou-me. Afastei-o com um pontapé, tirei a pistola do cinto, eu tinha comprado aquela pistola dias antes no Roque Santeiro, veja lá, e disparei. A bala atingiu-o no peito, atingiu-o de raspão, eu larguei a lanterna, larguei tudo, aflito, e o tipo escalou o buraco. Agarrei-o pelas pernas, com força, ele sacudiu-se, esgueirou-se, soltou-se, deixando-me as calças na mão. Fui atrás dele. O resto já você sabe. Estava lá. Foi testemunha de tudo o que se passou depois.”
E Ângela, sabia que você era o pai dela?”
Ela jura que sim. Contou-me que Marina lhe escondeu a tragédia durante muitos anos. Até que um dia, era inevitável, alguém, uma colega, creio eu, uma amiga da faculdade, insinuou qualquer coisa. Ângela reagiu muito mal. Zangou-se com Marina e com o marido dela, os seus pais, afinal, os seus pais verdadeiros, excelentes pessoas os dois. Zangou-se com eles e saiu de Angola. Foi para Londres. Foi para Nova Iorque. Soube que eu era fotógrafo e isso levou-a a interessar-se pela fotografia. Tornou-se fotógrafa, como eu, e, como eu, tornou-se nômada. Há alguns meses você estranhou a coincidência de sermos ambos fotógrafos e de termos regressado ao país mais ou menos na mesma altura. Você não acreditava que fosse uma coincidência. Bem, como vê, não foi inteiramente uma coincidência. Ângela jura que mal me viu, uma noite, lembra-se?, uma noite em vossa casa, jura que mal me viu, mal pousou os olhos em mim, adivinhou quem eu era. Não sei. Quando penso nesse encontro o que me ocorre é o susto. Para mim foi um estranho encontro. Eu, sim, sabia quem ela era. Nenhum de nós disse nada. Ficamos calados. Passaram os meses e então, naquela tarde, eu disparei contra Edmundo e ele correu a procurar refúgio junto da única pessoa que o podia acolher – Félix Ventura, ex-aluno do Professor Gaspar, um homem da tribo...
José Buchmann calou-se. Bebeu o que restava da cerveja, num trago longo, e ficou depois, absorto, os olhos mergulhados na densa folhagem da mangueira. Estava-se bem naquele quintalão. A sombra caía sobre nós como um jorro de água fresca. Um áspero ardor de cigarras somou-se por instantes ao canto dos pássaros. Veio-me um sono, uma vontade de fechar os olhos e dormir, mas resisti, certo de que se adormecesse naquele momento acordaria instantes depois transformado numa osga.
Tem notícias da Ângela?
Vou tendo. Deve estar neste momento a descer o Amazonas numa daquelas barcaças lentas, preguiçosas, que à noite se cobrem de redes de dormir. Há muito céu por ali. Muita luz na água. Espero que se sinta feliz.
E você, é feliz?
Eu estou finalmente em paz. Não receio nada. Não anseio por nada. Acho que a isto se pode chamar felicidade. Sabe o que dizia Huxley? A felicidade nunca é grandiosa.
O que vai ser de si?
Não faço ideia. Provavelmente serei avô.
José Eduardo Agualusa, in O vendedor de passados

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