sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Otelo e a doença da suspeita

 
Iago, (à direita), interpretado por Kenneth Branagh, no filme de Oliver Parker, de 1995: intrigas semeiam a dúvida na mente de Otelo, vivido por Lawrence Fishburne.

Os textos de William Shakespeare são caracterizados por descrições minuciosas das paixões humanas e da loucura que muitas vezes as acompanha. O dramaturgo inglês apreciava personagens extremados, representações de violência e cenas de morte. A insanidade desenvolvida por Otelo marcou a subjetividade ocidental, por sua precisão e universalidade. É por esse motivo que análises do texto continuam a surgir e a se contradizer reciprocamente e as representações da peça nunca cessaram, desde sua primeira montagem, em 1604. E muitos estudos e artigos privilegiam os aspectos psíquicos do protagonista. Aparentemente, Shakespeare estava bem informado sobre a então emergente ciência do alienismo, em uma época na qual imperavam as superstições e conhecimentos sobre demonologia. Isso o levou a desenvolver em sua obra uma abordagem moderna da loucura, entendida essencialmente como a incapacidade de perceber e interpretar as próprias emoções (ou paixões). Por isso não surpreende que psiquiatras tenham utilizado um de seus personagens mais famosos para designar um distúrbio comportamental: a síndrome de Otelo.
A trama é simples. Um prestigiado general de pele morena (Otelo, o mouro) casa-se em segredo com a bela Desdêmona, filha de um nobre veneziano. Iago, amigo e subordinado do protagonista – e um dos mais famosos “malvados” da história do teatro –, faz de tudo para arruinar esse casamento e prejudicar seu superior hierárquico. Para atingir esse objetivo, instiga o ciúme, fazendo Otelo acreditar que a mulher o trai com Cássio, um jovem tenente. O plano funciona tão bem que Otelo acaba matando a mulher e suicidando-se em seguida. Para quem assiste às malvadezas de Iago, suas mentiras e audácia são de tirar o fôlego. Mas o conjunto dos personagens é constantemente traído por uma retórica excessiva: ele finge expor coisas que preferia esconder, mas que revela por se sentir obrigado pela amizade e fidelidade que o ligam a seus interlocutores. O mecanismo constitui a parte essencial do desenvolvimento do texto, até o desfecho trágico.
Na verdade, com exceção das mentiras mais ou menos sutis de Iago, quais “provas” levarão Otelo a assassinar a esposa? Elas são risíveis: um lenço perdido e misteriosamente encontrado nos aposentos de Cássio, um mal-entendido durante uma discussão na qual o tenente fala de sua amante Bianca (que Otelo toma erradamente por Desdêmona), e as mãos úmidas da mulher, para ele um indício revelador de sua infidelidade (quando na verdade ela está simplesmente ansiosa). O cúmulo da ironia é que Otelo chega a considerar seu próprio ciúme uma prova da infidelidade da esposa: “Uma natureza não se deixaria invadir dessa forma pela sombra da paixão (ou emoção) sem um bom motivo. (…) Não são meras palavras que me tanto agitam”. E mesmo o assassinato de Desdêmona constituirá uma prova complementar da culpabilidade dela: “Eu sofreria a danação das profundezas do inferno, se não tivesse chegado a esses extremos sem motivos justos”.
Embalado pela eficácia de suas maquinações, Iago leva a simulação a ponto de colocar Otelo contra seu próprio plano, na famosa fala: “Oh! Cuidado com o ciúme, meu senhor! Ele é um monstro de olhos verdes, que produz o alimento do qual se nutre! Esse chifrudo vive na alegre embriaguez de quem, tendo certeza de sua adversidade, não ama aquela que o trai; mas oh! que malditos minutos ele conta, esse que ama, mas duvida, mas ama perdidamente!”. A ingenuidade do general, não somente por confiar cegamente em Iago, mas, sobretudo, por apostar em sua própria capacidade de discernimento, aparece em toda sua ironia quando ele afirma, convicto, que não é homem de sucumbir com facilidade ao ciúme. E Iago não precisa mais do que concluir hipocritamente: “Eu devo rogar que não deis a minhas palavras um desfecho mais grave, um alcance mais amplo do que o de mera suspeita”.
A peça é um estudo magistral do ciúme patológico, um tema inúmeras vezes dissecado por pesquisas clínicas posteriores. Hoje, sabe-se, por exemplo, que essa emoção extremamente perturbadora vem acompanhada de perturbações psicológicas. Os homens são particularmente sensíveis à simples representação mental de uma infidelidade sexual e esses pensamentos costumam ser suficientes para aumentar a pressão sanguínea e fazer soar o alarme do sistema nervoso autônomo. Iago abusará dessa fragilidade para levar seu general à loucura, por exemplo, quando sugere a ele, com ar de quem não quer nada: “Agradar-lhe-ia assistir, estupefato, a um grosseiro flagrante e vê-la ser assediada?”.
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