domingo, 28 de agosto de 2016

O sonhador atado, em sua solidão, na obra de Dostoiévski

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Em Noites Brancas, obra de Dostoiévski que se permite ser chamada de romântica, o personagem principal, o Sonhador, desfaz-se das costuras que o amarram ao isolamento e, ao trilhar pela cidade, resolve viver uma realidade no mundo externo, apaixonando-se. E o tempo que dura pode, ao menos, satisfazer suas melhores recordações.
Depois de anos devaneando por Crime e castigo, Os irmãos Karamazov, Recordações da casa dos mortos, O jogador, O Idiota, tendo sido todas essas obras esgotadas em falatório e adoração, já era tempo de voltar à aurora do brilhante Fiódor Dostoiévski e buscar algo mais concreto, porém inusitado: a novela Noites Brancas.
Diante de fortes pitadas de romantismo, é possível descortinar todas as páginas (ou as quatro noites) de uma só tacada, sem intervalos para se aprumar na poltrona, tomar um café ou se incomodar com a tragédia existencial e os extremismos em palavras do personagem principal. Pelo menos, não é durante a narrativa que o desconforto povoa a leitura.
O leitor sequioso por novidades pode até presumir que se trata de um romance. Pode entender a cidade em que se desenrola a história como personagem principal. Pode superar os excessos das confissões e justificativas contidas nos diálogos e estabelecer o amor e a devoção amorosa (ah, o amor) como tema central. Entretanto é inevitável enxergar que a solidão de cada um, clamada ou sonegada, é o que guia a memória do narrador, do começo ao fim.
Intitula-se de o Sonhador o protagonista. Seu nome, de fato, é desconsiderado em todo o romance. Ele vive sua rotina de trabalho sem questionamentos, deixando para viver a vida ao final do dia, quando aparece a noite branca, expressão essa que faz referência ao fenômeno climático das noites do início do verão, em que o sol não se põe, permanecendo abaixo da linha do horizonte e, portanto, não anoitece. Isso gera um atmosfera quase delirante em que a escuridão dá lugar a um manto diáfano, mas suficientemente claro, para que os arredores sejam consumidos por ele.
É nesse momento que ele traz alma e sentido à cidade em que mora (São Petersburgo) e a tudo que o rodeia, como, por exemplo, as casas em seu caminho, que ganham vida, diálogos entre si e um certo tom de resignação. E julga, dessa forma, conhecer melhor aqueles com quem esbarra ou cruzam os seus passos, ficando sempre num quase sorriso, num quase cumprimento, numa quase troca de palavras, a um fio de estabelecer alguma relação com alguém de carne e osso, voz, toque e desafio. O Sonhador cria, então, intimidades mentais com a cidade e com os moradores, sendo ele mesmo uma sombra pouco notada ou lembrada, já que mantém seu habitat unicamente dentro de si mesmo. “(...) como se todos tivessem me esquecido, como se eu fosse, de fato, um estranho para eles!” E são, justamente, essa mesmice e o gosto pelo conhecido que trazem a segurança de não sair do lugar, mesmo quando muitos já estão partindo.
Porém, Dostoiévski traz o amor, a paixão repentina vivida intensamente por meio da linguagem, do escambo de palavras e entendimento mútuo (ao menos no pensamento fantasioso e enclausurado do personagem central) em quatro noites. Ela, Nástienka, menina ingênua, armada de sonhos, já que tem sua liberdade tolhida, passa os dias atada à saia da avó, tendo ainda como companheira uma criada surda. E ele, o Sonhador, segue igualmente atado a sua solidão sem costura. E tudo o que os aproximam são lágrimas e alguns gritos, suficientes para dar início a longos instantes de conversas, banhadas pela claridade das horas e iluminadas pela brancura da noite.
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