terça-feira, 16 de agosto de 2016

As maçãs

No portão, Lauro espiou a luz da janela. Toda noite olhava muito a janela iluminada.
Entrando, deixou o portão aberto para os cães vagabundos.
Abriu a porta da cozinha, descansou o embrulho na mesa. Viu o bilhete de Sílvia — não era de amor. Sentou-se, chapéu na cabeça. Não acendeu a luz, à espera. Ainda era dor, já não podia chorar. Na penumbra distinguia a louça na pia, adivinhava o jantar de Sílvia. Cascas de maçã... Ela não perdera o apetite. E, antes de erguer-se da cadeira, acender a luz e lavar a louça, deixava pender a cabeça na mesa.
Eu era feliz, repetia, bem que era feliz. A essa hora, deitado com Sílvia na imensa cama de casal. “Que está fazendo?” Quieto, de olho fechado. Sílvia ergueu o lençol e surpreendeu-o de mão no peito.
Ah, o riso canalha ao descobrir que ele estava rezando... Porque feliz agradecia a Deus.
Toda noite, um passeio depois do jantar, lia o jornal na cama e rezava. Enfim dormia, mas não Sílvia, a olhar para o teto.
Lauro chegou mais cedo: a casa deserta. Esperou por ela, sentado à mesa da cozinha, o chapéu ainda na cabeça. Sílvia entrou, com a franjinha desfeita. Diante dele abriu o casaco: estava nua. Desceu a escada, toda vestida, maleta na mão, nem disse adeus.
No mesmo lugar quando ela voltou: o outro não a quisera. Jogou a maleta ao pé da escada. E, para se vingar do amante, contou-lhe o nome. Depois o nome de outros, não fora o primeiro. Nua sob o casaco, deitavam-se em qualquer lugar. Estendeu-se no formigueiro, comida pelas formigas, não se ergueu do chão. Recolheu-os em casa, na cama do casal.
Por que, meu Deus?” insistia, em desespero. “Te odeio” — acudiu ela — “eu te odeio”. Odiá-lo, como podia? Sílvia abalava do leito, à janela com falta de ar... “Um chazinho, meu bem?” intrigado, sentava-se na cama. Aflita no meio da noite, a saquear a geladeira. Quando a mulher se deitava, Lauro dormia de novo, ouvindo os arrotinhos. Como no tempo de noiva, queria saber: “Ainda se vê a marca, Laurinho?” Na testa a cicatriz escondida, ora sob um cacho, ora sob a franjinha.
Lauro ergueu a cabeça, escutou os ruídos. Nenhuma torneira pingando. Não mais lançaria os gritos daquela noite. Na banheira, outra vez nua, os pulsos riscados... No delírio chamava o amante.
Trancou-se no quarto, com vergonha dos filhos. Lauro os mandou para casa da tia, noutra cidade, despediu a criada. Apenas os dois na casa; ele dormia no quarto de hóspede.
Horas inesperadas vigiou a casa. Entreviu-a na janela, de combinação preta e, ai dele, a franjinha penteada... Acendia o gás, fazia café para os dois. Tomava uma xícara, esgueirava-se à sombra das árvores pelas ruas desertas.
Trazia uma ou duas maçãs no bolso. Sílvia era louca por maçã verdoenga, que belisca a língua. Ele as espalhava no seu caminho. Muitas apodreceram nos degraus da escada até que, uma noite, tornou a comê-las.
De regresso, lavava a louça empilhada na pia. Almoçava e jantava só, na mesa nua da cozinha; a toalha suja atirada no canto. Sílvia no quarto, aguardando que ele saísse, para descer a escada. Culpava-o ainda do outro... Partiu jubilosa de maleta na mão, o tipo não a quis. Voltou, falsa arrependida. Não para ele ou para os filhos — outra casa não tinha. Subiu a escada aos gritos: “Te odeio, Lauro. Nunca mais perdoo”.
A maldita dor, ofegando, mão no peito... Já doía menos, envelheceriam na mesma casa, cada um no seu quarto.
Enfim apanhou na mesa o bilhete de Sílvia, guardou-o no bolso. Não precisava ler, sabia o que era. Pedia cigarro turco, perfume, verniz para unha... Maçã, trazia por sua conta. Não a odiava, não a ela. E ao outro? Por causa do outro deixou de rezar.
Envelheceria. Os filhos eram homens, dele não careciam. Seu destino na casa de luz apagada, jardim abandonado, janela fechada. Naquela casa com Sílvia. Sabia quando tinha entrado no banheiro ou na cozinha. Abria a porta e esperava, chapéu na cabeça: o beijo da maçã no escuro.
Sílvia não queria envelhecer: roía a unha, depois a pintava, roía e pintava de novo. Em vão passeava nua no quarto. E buscava, cada dia, um fio branco na franjinha. Tantos, não poderia arrancá-los. No bilhete anterior não encomendou tintura para cabelo? Rezava pelo perdão dos filhos, chorava diante de seus retratos. E engordava. Com a vida reclusa engordava, os cabelos perdiam o brilho, os olhos seu clarão. Nem um outro, senão ele, havia de querê-la.
Levantou-se da cadeira, retirou a maçã do embrulho, foi até a escada. Voltou à cozinha, acendeu a luz e pendurou o chapéu. Abriu a torneira da pia. A água correu mansamente pelo coração aflito: não estava só.
Dalton Trevisan, in Novelas nada exemplares

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